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sábado, 31 de agosto de 2013

Alucinações de uma vida paralela (11)



 
É então o grito longo e atroz que sela e inicia o silêncio. O meu. Chegam todos para tomar conta de mim, pegam em mim, erguem-me nos seus braços, dançam comigo à vez e eu entonteço nos rodopios enquanto penso que há muito tempo que não dançava, fecho os olhos, não quero saber de mais nada porque nada mais importa, nem sequer me lembro se dançar é bom.
O meu mundo tem o tamanho de uma cama kingsize. Não posso saír deste espaço sem correr o risco de perder o lugar de tão cheio que está sempre, muita gente a entrar e a saír, muitos que já não vía e até pensava que estavam mortos agora aqui regressam e fazem-me companhia. Mas não me ouvem, só falam deles, ininterruptamente debitam palavras que por vezes e a muito custo consigo seguir, quero tomar notas mas não sei escrever, não me lembro como se desenha o meu nome, procuro na memória as primeiras letras e muita gente me ralha.
Há muitos de mim a repetirem as minhas palavras como um coro desafinado. Vão-se destacando, afastando, e à medida das minhas perguntas a saciedade de cada resposta, individualiza-os, fá-los partir deixando-me sózinha.
O vazio que me enche até à garganta é o meu peso total.
 
 

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

(Eu) Declaro




Não sei onde foram buscar essa mania que eu aguento, que sou forte que nem pedra, dá-lhe que eu aguento, nunca disse que era forte e resistente para suportar de pé golpes a gosto, investidas no peito em que me finco na terra tal como árvore que me faço, não caio, não caio, estremeço, tremo por dentro, o meu coração agita-se como um cavalo suado sem rédeas e depois pára, bate no descompasso da arritmia que pulsa na testa e me interroga: Porquê?
Onde foram buscar essa idéia de que a dor me resvala, que o ricochete das palavras e dos gestos me é pele?
Lá porque não choro defronte a vós, não imploro ou ajoelho, não sou posta de carne andante, sinto, amargo, amo e desgosto tanto ou mais que todos, apenas escolhi andar para a frente.
 
 

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

10m


 
 
Há tempo para café e tempo para fumo, mais o tempo para galgar os degraus e vir ao ar livre no topo do prédio observar o vai-vem dos carros para lá e para cá.
Não há tempo para mais nada.
Está tudo contado.
Intercalo o gole no copo com a contagem dos pesados que se fazem ao viaduto e observo a sua lentidão ao serem ultrapassados pelos ligeiros, rápidos, sem paciência para o ajouje das cargas e das lonas esvoaçantes ou enfunadas, puxo a brasa ao cigarro e fixo sem pestanejar até me arderem os olhos.
Perco-me.
Talvez esteja aqui há horas a contar carneiros a saltarem sebes mas uma ambulância assustou-as com o seu anúncio de desgraça na sirene rotativa azulando o grito para todos se afastarem e também eu corri com os olhos todos os cantinhos e não acho nada.
Só o céu, um mar imenso onde nado de peito e o meu cigarro não se apaga nem o copo se salga. Afinal os carneiros esconderam-se na ponta do marulhar e o ruído das suas vozes é a gargalhada da partida que me pregaram, uma cabra-cega com tudo à frente e que não vê o exposto.
Sorrio, acho graça à graça das ondas, curvas que me perdem nas contas, já não sei que horas são, é tudo meu, o tempo é a minha mão fechada e se a abrir serão 10 minutos caídos da minha vida.
Regresso.
Os carros continuam.
Eu fui até onde ninguém consegue ir. Outros irão decerto.
 
 
 

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Curitas, vulgo penso rápido




Quando me dói escrevo que dói para não me esquecer e não me esqueço mais sobre a razão que me levou a pedir às letras para se juntarem e conversarem comigo. Ajudam-me sempre. A maior das vezes até saram. Tenho umas quantas cicatrizes. Uma ou outra escondo, guardo para o escuro do dedo a lembrança da sua existência. Doutras orgulho-me, deram-me luta na convicção da palavra e do fundamento de que me empenhei sem a teimosia articulada do mero artigo, mas argumentado, testado, comprovado.
Há ainda outras dores que não passam nunca, chegam, vão e regressam ciclicamente como estações do ano. Aprendi com elas, a tomar-lhes conforto no verbo, a enxotá-las quando me carregam demasiado na alma... Mas a todas desenho, declaradamente, figurativamente, jocosamente, com maldição como se de tempero lhes faltasse mais ainda.
 
 


terça-feira, 27 de agosto de 2013

Casablanca VII

 

 
 
É hoje. Depois do Sol queimar como ferros em brasa e sem perdão escutado, eu infiel por ter invadido esta terra onde fui chamada pelo grito longo e ondulado e mãos em concha nos ouvidos fingi a surdez dos que pensam que a ocidente sabe-se mais. Nada sei, vou mais cheia, atestada no peito, de bagagem raso a lei e ainda assim duvido de mim, da balança, do português que me acompanha e que almoçou bem a salada caesar. Não me lembro do que comi, terei almoçado, terei tomado alimento durante todo este tempo que aqui estive para além de flores e sementes e mel e este odor que me peganhenta nos olhos? Deixa o Sol perder a força, depois iremos. Não vejo o oásis.
 
Mas há um avião de papel.

 
 
 


 
O assento duro dormenta-me a realidade e torna-se dificil puxar as memórias para me fazerem companhia no ruído das vozes que tentam imitar coragem em espaço tão apertado. Quarenta dentro de um ovo de codorniz. Penso na minha mala sózinha na cauda do avião e nos pequenos bolinhos de recordação, nas mãos que os moldaram para os oferecerem à boca e palato dos que eu amo. Quero isolar-me nestas pontes de tempo e não consigo, os motores atordoam-me a roer as borrachas oferecidas com que entupo os tímpanos, quero voltar para o meu quarto de hotel e para as saudades de casa e da melodia do francês, quero fugir e avançar.
 
E chega luz da hora do lobo
 


 
 
Do meu tamanho, a minha paz. O meu mundo nas lágrimas secas que trouxe do outro lado. Sempre houve uma razão para a terra não me ouvir quando tanta pergunta lhe atirei e depois nas costas voltadas não me importei mais com o silêncio da devolução. Há chuva aqui, onde o Sol brilha como ferro que perfura no coração que parece estar morto.
 
Ilumina-me.
 
 
 
 
 
 
Senhores Passageiros, obrigado.
 
 
 

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Álbum de fotografias




Acordei cedo mas ainda com sono, os olhos pesados de uma noite que se traz nos ombros doridos de não ter posição e só o dorso apetece ser a curva de tudo. Aprontei-me a tempo e a contragosto,  nenhum apetite especial, nenhum brilho no dia, nada de contrariedades a confirmar a falta de vontade nas veias que me pedisse a volta ao inicio e justificasse a ausência aos compromissos.
Um dia parado pensei, e recordei sem razão ou objecto que aí me atirasse ou vista que mo lembrasse, dias de férias, longos dias de férias sem a prisão do vestuário, o corpo tisnado de tanto mar salgado a arranhar na pele e narizes besuntados de um creme branco e areais a perder de vista onde se corría até perder o ar.
Senti a veia debaixo da correia do relógio a pulsar.
E um silêncio profundo na cidade.
Eu e a cidade. Eu entalada numa fotografia onde quería ser eu. Livre, de novo inocente, ingénua, achada num areal onde a corrida era a maneira mais dificil de alcançar fosse o que fosse, os gritos eram o susto ao mar gigante e tudo podía ser desde que construído pelas mãos e a dizer-se faz de conta que.
Eu aprisionada em mim.
 
E corri. E a cidade moveu-se, e o trânsito arrancou e apitou, e as gentes andaram e falaram.
E eu ouvi o mar.
 
 

domingo, 25 de agosto de 2013

Olhar com vista sobre o Rio (4)



 
Sei-te de cor, sei-te de mar, sei-te doce pois se Rio és de nome Tagus, mas a tua imensidão no meu peito é-me tanta quanto o oceano que já provei e um dia me quis levar. Quem sabe se a teu mando... tens dias egoístas, nós sabemos, a tua profana vontade vem de tempos velhos, religiões de infiéis, ou fiéis que sei eu?, que não me dobro perante a fé do homem e a ti devota, canto, choro e até numa reza de beata sacrifico o corpo às moléstias da chuva e do Estio para te ver e adorar.
 
Ingrato, vai-se a ver não passas de marés, humores, cores de água cambiadas na veneta daquela hora e eu sou só mulher, uma margem alcançada ao pedido de um beijo.
 
Beija-me.



(in Olhar com vista sobre o Rio, 2011)

sábado, 24 de agosto de 2013

Meio-do-dia


Mesmo antes que os dois ponteiros se unam a um traço negro e se façam soar na força do meio do dia em que o Sol a pino se verte de pingos de lume sem deixar sombra deitada, já as feras se recolheram amansadas das forças que se preparam para mais tarde, lentas e cautelosas mas sagazes e alerta, encetarem a caçada.
Até lá, outras bestas atacam.
Os sonhos moldam o corpo e a essência do mundo é outro mundo plasmado na incoerência da interrogação. Descansos que deveríam provir a carne do fisico derrotados à imaginação amolecem o abandono cálido à sombra recostada, nada se mexe, só o sossego do momento embrulha o momento.
Dorme. Dorme baixinho, profundamente. No suspiro da calmaria viaja longínquo e no tremor das pestanas a denúncia do horizonte nos universos privados onde ninguém entra.

 

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

As conversas são como as cerejas, sobra o caroço (3)



 
Final de almoço, café e palitos, a patroa e cozinheira, de mão na anca, pano ao ombro, aproxima-se do seu cliente regular das pataniscas e pergunta-lhe se estava bom, muito bom resposta dele, sempre fora iguaría apreciada desde os tempos de senhora sua mãe. A conversa evolui para o retrocesso, ou seja para o passado, mas tão passado que se chega ao nascimento do cliente.
A patroa e cozinheira já se sentou, enrolou o pano a uma das mãos, interessa-lhe a conversa, o cliente é distinto.
O cliente nascera por alturas de Março sem precisar o dia, como assim pergunta ela, não sei francamente, responde ele sorrindo. Era comum naquele tempo isso acontecer, nascer-se num dia e ser-se registado muito tempo após, e ficar como data de nascimento o dia do registo, mesmo que tal não fosse verdadeiro, continuou. Foi isso que aconteceu. O pai do cliente só o registou dois anos depois e em Maio.
A patroa e cozinheira limpou o nariz, passou o pano na mesa e olhou muito séria para o cliente.
- Se nasceu em Março é carneiro. Se tem a data de nascimento no bilhete de identidade a Maio, é touro.
O cliente sorriu.
- Bom! De um par de cornos não se livra.
 
 

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Que dia é hoje?


 
Há uma confusão a ser preenchida com discussão. Porque não a houve. Ainda. Porque não chegou o dia de acontecer o equívoco que desencadeará palavras que ficarão coladas no céu da boca como um sarro gorduroso de uma comida mal aquecida e outras que ganharão velocidade e ímpeto suficiente para saírem pelos cantos sem que mão alguma as consiga proteger na antevisão do estrago que ao tombarem no chão, espezinhadas, irão atrás de todos aqueles que por ali passarem, pararem, até mesmo os que hesitantes no segundo, desacelerarem o passo e apenas escutarem a interjeição, coladas nas solas, seguindo como rasto peganhento até rapadas num degrau de sitio escuro e desparecerem como se nada se houvesse passado.
 
Nesse dia, quando acontecer, irão perguntar-se mudamente que dia é hoje, que dia sería aquele para nunca mais o esquecerem. E perguntados no dia seguinte, mudamente, talvez se digam que nada daquilo devería ter acontecido. Podería ter acontecido. Havía razão suficiente e bastante para ter acontecido. E esperam nunca mais o esquecer para nunca mais o repetir.
 
Nesse dia, em que tudo aconteceu, em que uma discussão nasceu de um equívoco por falta de palavras à conta da demasia de outras e em que uma grande confusão se gerou sem proveito nenhum para ninguém, perguntando que dia fora aquele, toda a gente se afastará, rapará com o sapato num degrau de um sitio escuro e dirá que é dia para esquecer.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Olhar com vista sobre o Rio (3)



 
Espreito-te marota, não te quero importante, vejo-te tão belo nessa inocência mansa de Setembros recordados como se ainda fora Verão ao alto que esses leves arrepios a engelharem-te a face, dão corado à minha tez e riso aos meus lábios.
 
Se soubesses tu que sou eu, trinados finos não de fados a ti que faça, que desse tom já muito carpi de tantas voltas me levas e trazes, que sou eu que te sopro assim à vez, escondida e na brincadeira, outras águas mandavas vir, muito certa estou eu disso.
 
Mas esse tom azul não me engana, sei sempre o teu nome, quer sejas plácido Rio quer sejas a chuva a vingar-se de mim.




(in Olhar com vista sobre o Rio, 2011)

terça-feira, 20 de agosto de 2013

O nascer do dia




Noite à volta. Cada tudo meu nos sitios que lhe conheço de olhos fechados. Uma árvore verdeja-me a janela nos tons camaleónicos das folhas-fundo-céu e o veludo do alcance às minhas mãos é tão perto quanto o som do mar ou do rio que desagua nas palavras que consigo escrever para o imitar. Tudo é tão perfeito quanto a minha imperfeição. Sinto o cheiro da neblina a devassar cortinas frescas pela chávena tinta de café já usado no tóxico despertador da memória de horas usadas pela metade e na tranquilidade do instante o mundo pára.
Olho em frente.
No recorte clareado a árvore separa os universos.
Seguro a caneta entre os dedos dobrados e no papel branco sem linhas desenho a sangue azul o nascer do dia.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Cala-te



 
Cala-te!
Não digas mais
Ao meu dedo poisado nos teus lábios,
Mordida pelo olhar que me atiças,
Enviuvas-me de branco parida!
Não ter eco nem ricochete,
Assim eu quisera...
Cala-te, peço já de quatro...
Eu perdida,
Mais de ti dizía ao silêncio
Escuro, que me afogas, que me afagas
Querida...
Cala-te!
Murcho em mim, o nós, a vida.
Vai-te.
Mas cala-te agora.
Mente uma ultima vez,
Uma só para a despedida.
 
 
 
(Post in Flor da Palavra, 5 de Setembro de 2007)

domingo, 18 de agosto de 2013

Improvisos



Conseguir eternizar o movimento através de cada flash de memória, suspendê-lo, repetir até a perfeição ser o que se vê e nada mais. Cada salto, cada musculo retraído em camara lenta soltando partículas ínfimas de um pó muito fino que confere luz e brilho à silhueta é alongado no pescoço em extensão total, o dominio do corpo é permanente.
Depois, a gravidade.
Não do solo.
A recepção à terra, ao choque, à leveza do contra-impacto. A segurança. A cola.
Ou a mola que impele de novo para o céu ainda mais alto, mais elegante, mais projectado, os braços e as mãos como asas que flutam e planam independentes dos pés e pernas, lemes do voo gracioso.
Tudo é pluma que se segura no fio da lembrança e cristaliza nos sons interiores da orquestra dos anos que passam.
 
 

sábado, 17 de agosto de 2013

O bater do coração (dezoito)




Se me perguntarem porquê eu respondo. Ofereço uma lista de adjectivos que todos reconhecem e se identificam, nada mais fácil, objectivo e concreto, racional, de bom coração.
Mas não é por isso. Não é principalmente por isso. É qualquer coisa que não se diz, que não se inclui no rol do que todos comummente sabem e proferem, é um grãozinho tão minúsculo capaz de parar a engrenagem desta máquina alojada no peito, suspender o momento da vida e fazer valer o estar aqui agradecidos pelo que vemos, o que sentimos, quão grandioso se torna o instante.
Estes pequenos seres que fazem parte de mim, daquilo que sou, das minhas lágrimas e dos meus risos, nas minhas aventuras e companhia de noites brancas ensinam-me e oferecem-me um olhar, um toque, o apenas estar perto e nada mais, um quase silêncio com forma e conteúdo, um resguardo do mundo que me abraça.
Eu tão indefesa ao pé deles tão imensos.
 
 

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Casablanca VI




Medina. Mercado velho. Palácio abandonado, outro erguido, assim Hassan vai lembrando onde está e onde passou, não interessa se ele o primeiro ou o segundo ou outros que virão de mesmo nome.
Eu sem nome, apenas turista onde não me olham com mais motivo do que uma moeda, não me procuram nem agarram ao contrário do que me havíam dito, deixam que seja eu a interessar-me. Dizem em francês que o que têm é valioso e único, Madame venez voir, mas Madame vê as cores, os cheiros, e as faces riscadas de rugas misteriosas e nos disparos que tenta guardar como especiais todos se escondem ou fogem.
Envergonho-me do meu saco de plástico a tilintar nas pulseiras marteladas na mentira pobre de não ter mais Dirhams. Aceitam cartão de crédito. Enfeitam-me com lenços de seda e sorriem com fileiras de dentes brancos que se tornam mais brancos na tez noz-moscada. Madame é francesa, não, e de seguida falam em inglês, mantenho a negativa e falo de Portugal, um grande A e disparam para falar de cromos de futebol, do Chico Fininho. Cantam. O vizinho do lado vem meter-se. E outro.
Deixo-os a rir num árabe onde apenas me é perceptível sons arranhados.
Não muito longe o altifalante emite o chamamento aos fiéis.
 
 

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Memória de um dia



 
Há muitos anos, muitos, estava em Espanha neste dia 15 de Agosto. O sol roía a cabeça, os ombros, a vontade de falar, não havía sombra que aliviasse a pressão do peito de tanto calor que fazía. Como era feriado a maioria dos estabelecimentos encontravam-se fechados e a tentiva de fuga para onde houvesse ar condicionado era infrutífera. Viajava em grupo e onde quer que encostassemos, os olhos pedíam silêncio e dormitavamos de imediato, só articulando a palavra água para passar as poucas garrafas entre mãos, até se terem esgostado por completo. Discutimos, mas até isso sem muito ânimo, caindo num amuo enjoado que durou até vir o vermelho do final do dia. Quando voltamos a Portugal rimos, troçámos da nossa figura, fizemos um belo jantar, voltamos a viajar.
 
Passado este tempo, nenhuma dessas pessoas está comigo.
 
Um deles, um artista plástico admirável que desenhou a animação de um sumo que por aí se comercializa, vive sózinho num palacete, entre um mundo de fantasmas e outras alucinações, fala com o imaginário mas foge dos de carne e osso.
 
A rapariga morena de traços indios vejo-a frequentemente. Mora no fim da minha rua. Interpelei-a por duas vezes e por duas vezes voltou as costas e quase correu. Não insisti. Não sei o que se terá passado. Decerto não terá sido aquele 15 de Agosto. Nem outros dos anos seguintes que estivemos juntos. Deixou de me incomodar, apenas me habituei à dor.
 
E um outro que viajava com o grupo. Barulhento, estrondoso, de largas gargalhadas, sempre a cantar. Como se quisesse ocupar um espaço imenso no universo. Não o verei mais. Partiu silencioso durante o sono. Tranquilo, disseram-me. Era o meu irmão.




quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Nada




Nem é tanto o cansaço do corpo que também o é, mas muito da fartura do desacompanhamento e do grito da ajuda e ver as costas a irem-se com o som do não posso que estou cheio de afazeres, é o desalento de nunca pedir e à vez única escutar pela fresta da porta tenha paciência. Não tenho, já não tenho, já a gastei por isso venho de mãos abertas mostrar o vazio mas olham e como nada veem não querem saber.
 
Quero um dia em que arreio escudo e espada, leve, me deito na terra e apenas olho o azul sem ter que nele descobrir fórmula de inimigo ou outras artes escondidas que todos parecem ver à primeira e eu não descortino, azul, com todos os cambiantes até à noite, pesada, e sobre os olhos nada mais que uma tela, uma venda de sossego em que o sono chega e não há mais nada.


terça-feira, 13 de agosto de 2013

Alucinações de uma vida paralela (10)




Ah! O teatro.

O-TIATRU!

Não foi opção, foi condição, foi ar, foi roupa, foi pele, foi salvação, foi deitar e acordar assim dessa maneira já pronta e esquecida. Não lembrar de andar de pés de pato nem lordose que arrebitasse saia travada nem francês que não servisse para exprimir fromage ou parfum ou rouge, ruge por dentro mas não ligo que a mayonese talha-me as palavras e não tenho outras e as outras não as assento por não querer mais acentos nos que enxotei, não quero ninguém de roda de mim, tenho este palco que sou eu e a minha vida e esta correría de mulher tão bem composta que  passa de um ano para o outro, um dos meus melhores desempenhos sem tempo para pensar e que não se ache que sempre foi no improviso que a cena foi levada porque isto custa, custa, apupe o primeiro que disser que  me vê e desacredita porque só no fundo dos olhos, mesmo no fundo ainda há água que se agita. 
 
 

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Civilizadamente




Hoje fui maltratada, empurrada, virada para a parede sem direito a falar e com o gesto do indicador hirto encostado aos lábios e ponta do nariz, uma semiótica sem lugar no código da estrada mas universalmente conhecido pelo Vamos a calar ou na versão curta, Calou.
 
E eu calei.
 
Varri a sala com os olhos e apanhei os meus bocados, nem a raiva deixei por lá e as lágrimas que começavam a querer lavar o sujo do momento tratei de as economizar quando houvesse sede, engoli em seco, escutei a úlcera aos socos, espetei as unhas na palma da mão para desviar as atenções para outra dor, gastei o dinheiro no almoço que deitei para o lixo, repeti mudamente todas as asneiras do mais escabroso que conhecía e voei.
 
Atirei-me do primeiro ramo que balançadamente me serviu de trampolim e de braços abertos deixei-me ir ao sabor do vento, os cabelos desalinhados e a roupa enfunada, lá em baixo tudo pequeno, como sois pequenos e eu aqui, toma lá o meu sapato!
 
Sentei-me. Segundo round. É para cumprir, sem explicações. Eu cumpro. Mas têm de explicar. Que não consigo fazer nada sem explicações, pois é, eu sou do género complicadinha, tenho de perceber, depois podem mandar-me de novo para a parede. Mas explicadamente.
 
Mas qual é a duvida?! Dedo esticado ao longo do braço a apontar determinada direcção.
Decididamente, hoje não me deixam ser civilizada...
 
Ou será que querem o outro sapato?

domingo, 11 de agosto de 2013

Entra, senta-te e fecha os olhos




Faz-me um pouco de companhia, falemos de coisas banais que sejam, comecemos pelo tempo e do calor terrível que faz e do meu gosto pela chuva para depois teres oportunidade de torcer o nariz e chamares-me esquisita, contradizeres-me e tentares levar-me a confessar que tens razão que aí aponto o dedo à árvore e falo-te de comida e bebida e vida e do que ela precisa como eu que mais enrugarás a testa e depois suave, num sorriso aberto e lembrado, baixo comentas saber quanto aprecio árvores, é verdade e tu também e falas das tuas favoritas e de uma que em menino escalavas, teimosamente porque muito trabalho te deu até vencer os medos do desafio dos outros e o maior que era teu porque o sol olhado de cá de baixo te encadeava a vista e tudo parecía enorme, gigantesco, inalcançável e depois vai-se a ver, vai-se a medir e é tudo um sofrer à medida do nosso tamanho que ainda noutro dia passei perto dessa árvore e achei tão pequena e atarracada, larga e de muitos nós mas baixinha sim dizes, e eu deixo-te falar a ver as palavras saírem para mim, fecho os olhos e sei-as a caminhar para um sitio especial porque tudo o que me é dito é unico neste espaço criado em que te convido a entrar e a singularidade desta beleza só acontece porque não há medo em ti.


sábado, 10 de agosto de 2013

Contacto


 
 
Enquanto as cigarras esfregam as asas e tenta ajeitar o corpo às costas que doem na cadeira mais dura que o pensar, o sono estala-lhe os dedos cortando o circuito à realidade, não há olhos fechados mas não há vista que atinja o redor, está assim numa bolha gelatinosa que a ampara nos movimentos de oscilação lenta, um leve ruído é uma explosão, o roçar do gato é o abraço de um homem.
Agora nada importa.
A seu lado o condor, a águia, o açor, cordilheiras onde já voou de mil passagens e quer sentir a frescura de se projectar lançada a pique em cada gruta que do alto achar, há vermelho, verde, tanto verde que a faz sorrir, ouve o seu nome mas não quer saber, não quer responder, não a chamem que o verde é mais intenso e nada é tão belo como o que está a ver, tantas folhas verdes no rosto, fecha os olhos.
Branco. Onde está? Conhece isto, onde está, como veio aqui parar, ainda agora estava numa floresta, numa gruta, voava... e ela... conhece-a... não faças isso! Não abras a janela, não saltes, eu sei o que vai acontecer e como é que vais ficar, não saltes por favor! Estas paredes brancas são o teu quarto e não há aqui ninguém atrás de ti, só eu, não me vês? Eu não quero ver! Quero sair daqui, como é que se sai daqui, eu estou a sonhar! Alguém me acorde, por favor! Alguém chame o meu nome para eu responder e não ver ela a saltar! Não saltes, não saltes!!!
Ela saltou e o condor voou num círculo largo e lento a riscar o céu branco, branco.
Branco. No regaço o gato branco ronronava enquanto o homem baixinho dizia o nome dela.
 
 
 
(à Cristina Maria)

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Pessoana



 
Bom dia, café, pão, dinheiro, balcão vazio, ela veio e tocou os dedos na minha mão, olhei-a nos olhos pisados, de que cor são os olhos dela, procuro sempre a cor dos olhos e os dela são da cor do rio, fala baixo e a rispidez caracteristica fugiu-lhe.
 
Tenho sempre uma grande dificuldade em fingir que não sou inteligente.
 
Rio, nem sequer evito a gargalhada e quase me engasgo com o gole, pede-me perdão pela leviandade e que provavelmente não se terá referido a si como uma pessoa modesta, quero eu justificá-la entendendo-a mas ela prossegue e segura-me a mão.
 
Sinto-me num mundo pequeno em que muitos não me compreendem.
 
Ah mas eu compreendo-a, também eu não sou daqui quero eu dizer, mas não tenho lugar à minha fala que chegam outros clientes e ela larga-me, põe o ar fechado de sempre, bate com o manípulo da máquina do café e violentamente roda-o ao encaixe, dá os bons-dias a quem lhe paga e aviados oferece-me um sorriso.
 
Não me leve a mal, mas isto é um mundo solitário e pensam que por eu estar aqui a tirar bicas não sei de nada.
 
Agora, olhos nos olhos, já sei de que cor ela tem os olhos vou poder dizer-lhe
 
Vá-se embora, é o seu barco.
 
 

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Olhar com vista sobre o Rio (2)





Agosto, a gosto, rasgos que os meus olhos querem no beber de toda a água que me dás, fica-te com o sol a aquecer beiras e terras dos lodos que foram e afastam outras gentes. Quero-te em mim porque és meu, um egoísmo sem pudor e sem confissão de joelho ou cabeça baixa, há orgulho quando te alcanço.
 
Penso-te meu e basta-me esta posse.
 
Serei eu vida enquanto te sentir sangue a pulsar no verbo, janela que respiro, caminho que me leva a casa.
 
 
(in Olhar com vista sobre o Rio, 2011)

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Imortalidades




 
Receio bem que um dia a cabeça de per si se solte e se coloque imóvel sob uma das minhas axilas.
Sem mais préstimo, gasta, usada, acabada, o fundo ao tacho visto. E isto tudo comigo a saber e a assistir sem nada poder contra.
 
Até tal acontecer uso e abuso, treino-a, tenho medo que enferruje ou que se torne pastelona ou até acometida de doença, se encoste a uma baixa médica ou peça a reforma antecipada.
 
E nestes preparos luto. Luto verdadeiramente contra outro adversário que sem ir abaixo por mais golpes que lhe desfira, ri-me na cara, cospe no chão e se senta à espera que eu retome o fôlego.
 
A imortalidade do tempo está a matar o que quero dizer.


terça-feira, 6 de agosto de 2013

Campo de palavras (10)



Devo sentir-me grata pois o que tanto me aflige no sufocar é igualmente o que me acode nas horas da loucura e da busca da fuga ao mundo dos homens. Nunca há confessadamente, um sossego ou tranquilidade que me acalmem e permitam o afastamento clinico necessário para um bom restabelecimento e retorno em vigor pleno, mas o vigor pleno apanho-o em plena estafa na subida do verbo quando creio não conseguir acompanhar a velocidade do que quero, dos que me querem a dizer, da dislexia, da emenda pela perfeição, da incapacidade dos dedos no movimento profano do desenho das palavras.
Sinto prazer em escrever. Sem ter que prestar contas desse acto. Sem ter que medir pelos olhos de outrém - critico ou não - que tenha valido ou que tenha sido uma bosta.
Quando não restar esse agrado não o farei mais. Só isso. Sem dramas nem anúncio. É qb.
Que é como sempre aqui estive na clareira desta Árvore.
 
 

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Deixem-me




Deixem-me.
Não me digam nada nem façam barulho. Deixem-me. Deixem-me ter pena de mim e tentar puxar este choro que não vem, talvez se tenha afundado no Rio de tanto que falo dele, mais dele do que qualquer outra coisa, pode parecer que não sinto nada e que me diluo em água para não me perder nos olhares perdidos. Hoje perco-me eu, quero, preciso de ser tão frágil hoje que nada me fará levantar a vontade de animar outros a não ser a mim, de me dizer que hoje não preciso de ser forte, porque hoje quero que me deixem e quero apenas sentir saudades e chorar essas saudades que tenho a roer por dentro e finjo que são de outros para não me pôr a chorar à frente de outros.
Deixem-me suspirar. E soluçar também.
Sentir abandonar-me como se não houvesse chão e tudo se perdesse abaixo de mim como um desmaio da alma e um colapso da vontade, uma queda mole e desamparada em que nada mais  importa. Deixem-me ir e eu a ir. Nem que seja por um vértice de um segundo, parada, na sensação de uma tontura, no piscar de uns olhos que olham os meus, parados.
Deixem-me.
Não haver mãos que segurem as minhas e nem as minhas terem a força do querer, apenas a concha para aparar esta torrente que quero chorar e em pedras, apenas pedras de sal me queimam a garganta.
Deixem lá, eu gostava que bastando eu pedir, conseguiria.
Mas só me vejo encolhida no ventre de minha mãe.
 
 

domingo, 4 de agosto de 2013

Trabalhos




Sempre a gosto e num acto de puro amor não creiam nunca que a tarefa não seja árdua bastante para que consuma carne e sangue e até leve parte da essência da qual me constitui enquanto vista desarmada, aquilo que nomeiam pessoa, o tu com rótulo.
 
Outros, direi para mim, pois sei-os a conduzirem o pulso - nem sempre o direito - que os há tão canhotos quanto a mente os fez criarem-se cá dentro numa noite torta em que a chuva teimava mas nem pingou, ardilosamente laboriosos, demonstram facilidades que me despertam invejas, mas vai-se a ver, é só treino escondido, que no fundo, atentam ao mesmo que eu.
 
Queremos todos andar. Esta coisa do escrever, escrever todos os dias como quem se alimenta de si próprio mais não é do que andar, aprender a caminhar e rir dos primeiros passos, tropeções, uma pequena corrida, bater palmas, o primeiro salto sem cair, é todo um carreiro que se vai calcando à força de tanto o passar todos os dias, sempre diferente, sempre maravilhoso, sempre preciso na sua incansável necessidade de ser fabricado para o (re)começar a (a)prender.
 
 

sábado, 3 de agosto de 2013

A visita



A perfeição dos momentos é o efeito das acções dos seus autores.
Ela sabía-o e desde criança que tinha imaginado para si uma vida maravilhosa e encantada ao lado de um homem belo, bom e que partilhasse do mesmo conceito de mundo sem falhas. Tudo seria mágico mas possível, porque ela quería e muito e havia planeado e esperado desde muitos anos atrás por esse pedaço.
O dia de encontrar o homem belo chegou. De ficarem juntos também. Cada dia que passava, achava que a vida lhe agradecia por nunca ter duvidado de si mesma e ter sido persistente o bastante nas suas convicções para acreditar que quando se quer consegue-se tudo.
Tinha uma casa linda como um conto de fadas, imaculadamente limpa e arrumada, mas o homem belo e bom pouco parava nela e apesar do beicinho inicial dela, não houve dó que lhe chegasse ao coração e ainda menos lá ficou.
Chorou. Revoltou-se. Desentendeu-se consigo. Porque não dava certo se era isso que havia sonhado para si? Que partida de mau gosto era esta? Um jogo de azar que não ía bem com a decoração. Procurou ao redor e não encontrou nenhum objecto de gostasse mais que outro, gostava de todos, mas nenhum lhe trazía lembrança com significado. Tentou recordar-se de um momento especial entre si e ele mas por mais que se esforçasse, as noites de amor nunca tinham sido tardes de amor ou fugas de amor ou até um segundo que ela retivesse e agora, num descompasso da veia da testa, desejasse trazer ao presente. Não havia. Apenas tinha projectos de não sentir, perfeições de um só, coisas que se ouvem como estórias para adormecer até viverem felizes para sempre, que a verdade da vida é a perfeição das imperfeições.
Bateram à porta, ela abriu:
- É a dona da casa, suponho?
- Não, não, estou só de visita.
 
 


sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Outra e ainda outra vez




Já sentimos, já cortou, já sangrou até parecer secar e nunca mais voltar a doer com tamanha intensidade como dessa vez. Mas volta, e maior, mais profunda e dilacerante até rachar um meio que não nos adivinhávamos parecendo que não há cola que junte os bocados e o faça um inteiro. Mesmo que todos digam numa experiência semelhante que tudo passa, que o tempo lixa os rebordos da cicatriz, afaga as imperfeições da dor e depois, bem depois... é um espinho que custa quando se engole a saliva ao tentar falar-se dos que se perderam e fere devagarinho sem se ver.
Ao longo da vida levamos com as machadadas da ausência dos que se amam, ficamos amputados no peito, pedaços do coração à deriva digeridos no sal das lágrimas e enterrados com eles. E depois, há ainda a réplica de vivermos a dor da morte dos outros que não são nossos, escutarmos a saudade, o movimento de caracol do queixo ao peito e joelhos dobrados como se se quisessem engolir a si mesmos na esperança de fazer desaparecer o insuportável. Aí, revivemos a lembrança da nossa muito privada memória, comparamos e dizemos que nada é semelhante à nossa.
Quantas vezes fenecemos até o corpo viajar, largado, um invólucro inerte, carregado no universo, sem som nem vestigio de companhia...



quinta-feira, 1 de agosto de 2013

As conversas são como as cerejas, sobra o caroço (2)



 
Fevereiro, lançamento de um livro de poesia, hora de cocktail, não havía sólidos a fazer companhia para além de muito ruído e algumas gargalhadinhas. Um calor infernal, abram-se as janelas, vedam-se as janelas pelo magote que aí acode, com licença, que isto é pessoal que fuma.
Quando é que isto começa?
Ninguém sabe e ninguém pergunta, circulam-se pernas, comentam-se os últimos livros, as derradeiras escritas, os verbos amachucados por não valerem a semana dedicada, vazam-se copos, esbarra-se neste e naquele grupo, é-se conhecido sem nunca se ter sido, tratam-se de você ou de tu cá tu lá consoante o estilo de linguagem e de roupa, enchem-se copos, não há nada para acompanhar? há pouco parece que me cheirou a pastéis...
- Ahhh Você a dizer-me disso! Havía de ter lido o meu pai!
(E vai de bater ao de leve com o bordo do copo na manga do casaco do outro)
- Pois, talvez...
(E o outro de nariz enfiado no copo)
- Estou a dizer-lhe! O meu pai era Touro! Sabe o que isso significa, não é? Sabe?!
(Som indecifrável)
- Então? TOURO! É o que lhe digo!! E o seu?
- O meu pai é defunto.