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domingo, 19 de abril de 2015

Não é uma história de amor



Nem era madrugada nem a brisa de Verão era agradável. Não havia um odor perfumado no ar que inebriasse os sentidos no silêncio envolvente fechando o mundo ao quarto resguardado de qualquer mal que pudesse atingi-los.
Na realidade, o dia já havia nascido e uma criança gritava ao longe desesperadamente. Ouviam-se ruídos de tachos e panelas a caír, depois de novo o choro da criança que não se calava, um berro de uma mulher.
Ao lado dela o homem roncava. Mesmo afastado dela sentía-lhe o cheiro da pele a precisar de banho. Ou então eram os anos a passarem, o volume da barriga dele a altear os cobertores, notava o desenho recortado no contraluz a subir e a descer à medida da respiração forte, as mãos pousadas sobre o abdómen dilatado, a boca aberta, o cheiro.
Sentiu frio. A Primavera estava fria. Ou então era a falta das mãos dele a resguardá-la à volta do peito, da cintura, nos braços como cordas entrelaçadas para não a perder. Tanto tempo. Há tanto tempo. E era tudo silêncio nesse tempo, sem falarem, sem roncos, sem crianças a gritarem e sem barulhos dum mundo que não havia para além deles.
Levantou-se.
O homem segurou-lhe o braço e puxou-a devagar. Ela soltou-se.
Ele sentiu falta da mulher que costumava prender entre os seus braços para não a perder, costumavam ficar juntos sem dizer nada. Nunca lhe disse que era ela que o resguardava de todo o mal. Tornou-se feia com os anos, a boca fechada, as mãos ocupadas a afastá-lo sempre.
Levantou-se.

É tarde.
 
 

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