Todos os textos são originais e propriedade exclusiva do autor, Gasolina (C.G.) in Árvore das Palavras. Não são permitidas cópias ou transcrições no todo ou/e em partes do seu conteúdo ou outras menções sem expressa autorização do proprietário.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Em dia de espiga


Aparecía dentro da alcofa das compras ajeitado por cima dos legumes, os olhos dos malmequeres a sorrirem e a papoila a querer libertar-se sanguínea entre doidos verdes que lutavam em concursos de beleza, a minha mão a tentar amputá-lo para enfeitar o cabelo e a mão da mãe a sacudir-me para longe, pagã e ascenção, era dia de espiga, eu que sempre fui avessa a quintas a encantar-me por já saber ter chegado o instante mágico outra vez, de novo um ano corrido, vamos ver?
Dentro de um saco de pano branco bordado que dizía pão a vermelho e tinha uma espiga verde e outra amarela, a mãe tirava o ramo do ano passado, desfeito, um troço de paus finos e secos, um pão duro como gesso mas sem mácula de bolor ou outra mancha que fosse e uma moeda de tostão. A minha surpresa era tão grande quanto a satisfação da mãe, e de novo e num novo saco de pano branco bordado por ela se repetíam as preces para o ano a seguir em que nada nos faltasse, o amor, a paz, a alegria, a saúde, o pão e o dinheiro para o sustento, selava o ramo de espiga, um beijo num pão fresco e uma moeda de tostão. Depois atava as fitas do saco e lá ía eu pendurá-lo a meias na despensa entre as tranças de cebolas e o ramos de cheiros.
Tudo se cumpría.
Não entendo porque agora deixo o ramo de espiga a murchar no saco de plástico. 

1 comentário:

o Reverso disse...

acabou a magia da descoberta, o acreditar da inocência. os sacos de pano já não são bordados em casa, compram-se baratos nas lojas dos chineses.
as mâes, cá dentro, são como eram.
lembramo-nos bem delas...

as espigas ficam a murchar em sacos de plásticos
já não acreditamos que valha a pena cumprir rituais até ao fim.



possivelmente temos razão.