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quarta-feira, 30 de julho de 2008

Verdadeiras histórias - Espelho sem imagem





continuação





- Sabes o que vês no espelho se a ele te mirares à meia-noite?
- Sei.
- Experimenta e vês o diabo!
- Já experimentei, tia Celeste!
Ela apertou os lábios finos e segurou-se à beirada do lavatório, sem resposta.
João apertou a torneira e estancou o jorro de água, passando-lhe a toalha turca.
- Sabe o que vi, tia Celeste?
- Tu desafias-me?
- Não. Já experimentou olhar-se ao espelho, tia Celeste?
- Mas o que é isto?! Olha que eu chego-te a roupa ao pelo! Fedelho insolente!
- Experimente! Agora! Vamos! Tem o espelho mesmo à sua frente!
- Pára! Maldito, pára com isso agora…não me faças isso… – e algumas lágrimas começaram a verter-se, a voz enfraquecida pela dor.
João segurou-a pelos ombros e tenaz, virou-a de frente para o espelho. Mas ela escondia a cabeça e gemia, as mãos trémulas seguras no lavatório. Então prendeu nas mãos a cabeça branca da tia-avó e obrigando-a a olhar em frente disse-lhe junto à orelha defeituosa:
- Veja! Veja o seu diabo! E ainda não é meia-noite, tia Celeste!
- Tu não sabes de nada! És um miúdo ranhoso e medroso, que se mete debaixo da cama! Tu não sabes nada da vida! Nada de nada!
- Sei que a tia é má e assustou-me muito quando eu era pequeno! É má tia Celeste! Má!
- Cala-te! Cala-te!
- É má e é por isso que ninguém gosta de si! Por ser tão má até o seu noivo a abandonou!
Celeste olhou para ele através do espelho, a boca aberta num esgar, os olhos a saírem das covas. As mãos de João continuavam a prender a cabeça da tia a par com a dele ligeiramente tombada sobre ela, que o Joãozinho pequenino de outrora tinha crescido muito, muito.
- Tu não queres saber…ninguém quer saber de mim… – e chorava baixinho, não como uma velha de muitos anos mas com uma voz doce, quase ciciada.
João não estava perceber o que se estava a passar e assustado recordou a história do diabo, libertando a tia Celeste e dando dois passos atrás.
Então, reflectida no espelho surgiu a imagem de uma rapariga morena, os olhos castanhos muito brilhantes, pescoço alto emoldurado por um cabelo longo e de aspecto sedoso, um sorriso aberto para receber das mãos de um homem um par de arrecadas em ouro e um beijo na testa junto à raiz do cabelo.
João aflito tentou sair da casa de banho mas a porta trancada manteve-o perante as imagens desfiadas no espelho pendurado por cima do lavatório. A tia Celeste mantinha-se amparada à beirada, velha, negra e chupada como sempre.
Só a figura de uma rapariga em vestido de noiva aparecia reflectida. Um ramo de pequeninas rosas brancas seguro ao peito começaram a murchar lentamente, pétalas caíram, o véu que a cobria toda engelhou-se, descobrindo no longo cabelo uma madeixa branca onde recebera um beijo, levado em pedaços por um vento súbito que fez apagar em escuridão as imagens.
A tia Celeste pegou na bengala e estilhaçou o espelho.
Depois virou-se para João e disse serena, como ele nunca a vira:
- Agora já sabes o que é ver o diabo.
E saiu, amparando-se na bengala e no peso dos anos de sofrimento e abandono.
João não sabia o que pensar, o que fazer, como agir a partir de agora, achou-se com um medo redobrado da tia Celeste e começou a convencer-se que ela era mesmo o diabo em forma de gente.
Voltou cauteloso à cozinha onde a tia Celeste havia retomado o crochet com a atitude de sempre.
Endireitou a cadeira que deixara tombada e sentou-se. Havia um silêncio violento no ar. João tossicou. A tia Celeste largou os trabalhos e cuidadosamente retirou a arrecada de ouro que lhe pendia no lóbulo esticado. Depois embrulhou-a num dos inúmeros trabalhos de crochet já feitos, rendado e minucioso e entregou-a a João.
- É para ti, já não preciso dela.
Ele mudo e temeroso.
- Ao fim destes anos todos, foste o único que pareceu não ter medo de mim. E foi também a primeira vez que chorei desde o dia do meu casamento, que nesse dia chorei muito, muito…
João engoliu em seco, apertando o embrulhinho na mão transpirada. A tia Celeste levantou-se e serviu-lhe um refresco.
- Há sete anos quando fui para as termas, encontrei-o novamente. Um velho…como eu. Mas podia passar uma eternidade que sempre havia de o reconhecer… – olhava a direito para João que não descolava os lábios do copo e bebía atentamente as palavras da tia Celeste.
- Ele não se lembrava de mim, não se recordava de mim…agora também já não tem importância. Arranquei a arrecada que ele me oferecera e deixei-a na portaria do hotel, para lha entregarem…
João arriscou a pergunta:
- Falou com ele, tia Celeste?
- Não. No dia que me deixou também não falou comigo.
Ela não disse mais nada.
Na manhã seguinte, a irmã estranhou que Celeste não havia meio de se levantar e foi bater à porta do quarto dela. Mas não obteve resposta. Insistiu e por fim resolveu entrar, dando com ela deitada em cima da cama por desfazer, um véu de noiva poisado sobre o rosto.
Assustou-se e chamou pelo nome de Celeste, tomou-lhe o pulso e não encontrou a veia a bater. Tomou um espelhinho de toillete e chegou-lho à boca mas nenhum bafo embaciou a sua imagem.





(in Verdadeiras Histórias, C.G.-31/01/2007)

10 comentários:

SONY disse...

já não é a 1ª vez que fico sem palavras no final das tuas histórias!

Estes desfechos são sempre...espectavivos, nem sei bem o que dizer!

Já pensaste em escrever um livro com este genero de escrita?

Se já diz! Quero um exemplar...

beijo fantástico como tudo o que escreves e temos o prazer de ler!

continua...
Sony

Teresa Durães disse...

o passado com o seu peso infernal

vieira calado disse...

Pior estou eu!
Ando a ver o diabo, por aí, mesmo de dia!
Um abraço

Gasolina disse...

Sony,

Ainda bem que gostaste, deixa-me feliz.

Obrigado pelo teu tempo aqui na Árvore e pela generosidade das tuas palavras.

Um beijo para ti, Formiga, dos GRANDES

Gasolina disse...

Teresa,

Por vezes insuportável.

Gasolina disse...

Vieira Calado,

Não está só nessas visões.
Basta ver em que estado anda o País...

Obrigado pela visita.
Quanto tempo. Da última vez ainda isto era uma Flor.

Mateso disse...

Quase camiliano, minha querida!A trama...o ritmo...
Digo quase, não pela falta de quesitos, mas porque Camilo é Camilo.
Os meus parabéns.
Beijo.

Gasolina disse...

Mateso,

Longe de mim!
Nem aos chinelinhos do Camilo eu chego!

Mas obrigado pelo teu apreço.

De mim um beijo para ti, com desejos de um óptimo fds. (ou férias se for o caso)

papagueno disse...

Também eu fiquei sem palavras. Que história!
beijos.

Gasolina disse...

Papagueno,

Gostaste?
(sorriso grande)
Fico feliz.
Deu-me muito gozo escrever esta história. Acho que de todas as "verdadeiras histórias" é mesmo a minha favorita...

Um beijo para ti.