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quarta-feira, 26 de março de 2008

Arnaldo Sem Cabeça Para Nada - 2ª Parte



(continuação)


Ficou sentado a olhar o monitor em sleeptime, negro, com uma janelinha a viajar de canto para canto.
Veio a noite, abriu a gaveta e vestiu o colete duro e áspero de tanto uso e a folha que intitulava um resto a branco impiedoso.
Ligou a luz do pequeno candeeiro de metal prateado, o quebra-luz em forma de tijela, a mão esquerda aquecida pela lâmpada de 40 watts.
Reparou na sua imagem reflectida no ecrã, o contorno da cabeça, o desenho das orelhas sobressaindo do crâneo, um pedaço de pescoço encimando os ombros estreitos. Rodou a cabeça ligeiramente e tentou avistar-se de perfil, o nariz rasgando o negro do monitor contra a luz projectada. Sorriu e notou como reflectida surgiu uma bochecha como um pequenino montinho junto ao olho. Depois experimentou desenhar aves com as duas mãos, as asas prontas a erguerem-se conforme afastava os dedos e deixava trespassar a luz sobre o negro do computador. E fez também um coelho com as duas orelhas espetadas, e depois um cão e até um busto de mulher e já agitado nesta profusão de sombras chinesas reparou então que já não via a sua cabeça a destacar-se. Olhou novamente e constatou que reflectido apareciam os seus ombros, o pescoço mas das orelhas e consequentemente da cabeça, nada.
Levantou-se de sopetão e voltou ao assento devagar, na tentativa de capturar todo o contorno. Tudo na mesma. Olhou para trás e não viu ninguém. Desligou a luz e mantendo o indicador no pequeno botão voltou a activá-la. Tudo na mesma, nada da cabeça. Repetiu consecutivamente o acto de acender e desligar o candeeiro. Levou receoso as duas mãos ao crâneo e tranquilizou-se de imediato por sentir a dureza dos ossos, a espessura do cabelo, as duas orelhas uma de cada lado como deve de ser, o nariz saliente da bola da cabeça. Voltou a mirar-se e mais uma vez, decapitado. Sussurrou que já não tinha cabeça para nada e de imediato sentiu uma comichão por dentro, sem saber se ele provinha do nariz ou da garganta e acto continuo caiu-lhe no ombro, um canudinho de papel fino, ratado nas pontas, amarelado de muitos anos guardado.
Desenrolou cuidadosamente o que se assemelhava a uma rifa de quermesse e descobriu no seu tamanho original palavras que se atrapalhavam em linhas e exclamações num trambolhão de sentidos.
Reconheceu a sua letra mas não recordava porque razão havia copiado aqueles versos, nem quem era o autor, nem tão pouco a intenção de ter guardado um poema tão melado. Leu o titulo e esgaçou a vista ao constatar a semelhança com o seu actual ensaio falhado: SE ME CHAMAS. Mas aqui o poema prosseguia, tombado do titulo, prometendo a quem o chamava sempre lhe acudir, segurar a mão direita na pena molhada do sentimento forte da devoção, musa de encantamento, luz da vida e do existir.
Leu inúmeras vezes, algumas delas em voz alta. E cada vez que proferia os versos mais forte e agitado se sentia, tomado por um frenesim que o electrizava todo.


continua

4 comentários:

f@ disse...

não é só o arnaldo que tá sem cabeça para nada... lolll. fecha-me nessa arca e dormia ... mto bonito... beijitos

Gasolina disse...

F@,

Aquela arca parece-me, é mais despertar que para dormir...

Obrigado, beijo para ti

f@ disse...

Pois despertar o que sentimos e temos dntro de nós mas eu ainda só tive tempo de lr parte dos textos ... amanhã vejo o que penso as parvoices que escrevi ... mas depois de ler os teus texto... tá imprimido para ler...
desculpas e beiinhos

Gasolina disse...

F@,

Desculpa porquê?

Porque és sincera?
Porque escreveste o que achaste?
Poucos o fazem!
Não peças desculpa por seres franca.
Basta que o sejas.

Um beijo.