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terça-feira, 27 de novembro de 2007

Zé Grande - História contada em dois pedaços

Fechou os olhos e deixou-se ir, abraçada àquele torso vestido de negro e saias como ela. Lembrou-se que talvez fosse uma dádiva, um sinal lá do alto, a bendita, a escolhida, uma outra Maria. Abriu os olhos e viu a figura do Padre novo a afastar-se do seu corpo.
No dia seguinte, o velho Pároco Ramiro voltou, restabelecido das maleitas da psoríase, curado pela visita ao Vaticano.
O novo fora-se. Para todo o sempre.
Nasceu gordo como um bácoro.
A mãe esvaiu-se alagada nos sangues, no esforço de o parir e de implorar ao Criador que a mantivesse pura e casta. A parteira já com cinco para criar, condoeu-se da orfandade daquele bastardo e como boa cristã deu-lhe o peito ainfa farto do seu mais novo.
Ele deitou as mãos cerradas ao monte de carne e agarrou-se à vida.
Nada lhe faltara: Comida, parceiros de brincadeira, trabalho, pancada no lombo, um tecto, um pai e uma mãe. Nunca se inquietara a procurar a origem das suas diferenças: o nariz fino contrastava com o amontoado arrebitado do dos seus irmãos, o cabelo liso e negro destacava-se entre as cabeças cor de palha do resto da familia, mas o que mais se distinguía era a sua desmesurada corpulência e altura no meio dos corpos largos e atarracados do resto da prole.
Ficara Zé, de seu registo civil José Machado, por todos conhecido como Zé Grande.
E como os tempos eram duros, a lavoura o sustento e oito a comer, foi-lhe dado em destino o jus ao nome que ganhara: não havía árvore que o não temesse, lenhador que o ignorasse como valente a manejar a ferramenta e os seus dois metros de altura deram-lhe a lenda de ter sido gerado pela seiva de um eucalipto.
Gostava dessa história que ouvía de si.
Sempre tinha gostado de histórias, especialmente as que sua mãe contava. Também não conhecía outras, que a escola não o tinha merecido. Somava coisas por associação, por abate de troncos, por sobras de pinheiros. E bastava.
Não quería saber de quem o tinha deitado ao mundo, nem tão pouco como morrera: essa era uma história que já lhe havíam soprado mas que nenhum interesse lhe despertava. A sua familia eram os Machado e a sua vida cortar árvores.
Ía o Agosto perto do feriado e o calor apertava cada vez mais.
Aqui e ali chegavam noticias e fumo escuro de labaredas que comíam o verde. Bombeiros, só o nome lhe conhecíam que ali ninguém chegava nem quería saber. Era cada um por si a tratar das suas coisas e com a mão esticada ao Senhor Prior ao Domingo cobrindo o rebanho, tudo se salvaría.
Zé Grande, à soleira da porta falava para dentro, para a mesa onde já todos se havíam acomodado à ceia e onde ele não cabía. Tería que esperar que dois dos seus irmãos terminassem e lhe dessem a vez.
- Pai, com as festas tão perto e o lume a vir por aí, ninguém vai ligar!
O Pai mastigava e não respondía.
- Pai, tou cá com umas ideias...
O pai continuava a mastigar, olhou-o e arrotou.
- Pai, tou capaz amanhã de roçar aquele mato lá perto da Candosa...
O pai olhava o tecto ao vazar o copo de morangueiro.
- Pai, é que a Senhora vai passar pela Candosa e tenho cá um destes medos que se ateie ao manto... e depois vai tudo pró baile, ninguém quer saber senão da bailação!
- Vai lá Zé. Mas cuida que do nosso pedaço não fique restolho, que s'o demo s'apega! Nem sei! Nem sei rapaz! - E o pai tirou o boné com a mão direita e com essa mesma mão rapou na careca orlada de um tufo ruço.
Ergueu-se, espreguiçou-se e deitou abaixo os suspensórios. Recolheu-se aos fundos da casa.
Zé Grande, animado pelo consentimento do pai, saltou como uma mola e de empurrão enxotou dois dos manos, tomando o assento ainda quente do banco corrido.
O lugar do pai ficara vago.
Comeu numa pressa e pediu à mãe que lhe fizesse a cama. Quería dormir depressa para rápido chegar à serra e limpar o caminho por onde aquele andor coberto pelo azul celeste do manto da Senhora da Candosa havería de passar.
A mãe que o conhecía como um dos seus, pois que lhe havía dado do seu leite, esticou uma coberta no chão, e depois uma outra, que mesmo em Agosto, ele há noites de sereno.
Sorría para o seu Zé Grande. Entendía o que lhe ía na alma. E até já magicava numa história inventada sobre a Senhora a aparecer-lhe quando ele andasse no mato ruim. Zé Grande deitou-se nos panos: Não havía tamanho nem espaço de cama que comportasse um homem com dois metros.
Era escuro quando pegou no machado e na foice e se abalou serra acima.
Os olhos dominavam o breu e o barulho dos ralos indicava as bermas farfalhudas de fetos e amoras silvestres. Subía, subía sempre, uma e outra vez pisando o visco que soava a sapo chamando a fêmea. Quando atingiu o cume e a vista alcançou o coreto branco, as estrelas começaram a apagar-se e um fio amarelo riscou nos cabeços dos outros montes.
Tirou a camisa e atou-a à cintura.
Puxou atrás o braço direito armado da foice amolada e num silvo decepou o matagal seco e agreste.
Um pássaro largou como um eco as asas batidas em fuga.
E durante um tempo nenhum ruído se ouvía para além do aço implacável rasgando o ar até ao restolho teimoso que ficara de outros verões. Continuou sem cansaço algum até se deparar com um eucalipto magriço e esticado, bem no meio do rumo da procissão.
Primeiro atónito - que nunca vira ali aquela árvore - e depois desafiado na sua altura - um pouco acima do seu tamanho - largou a foice e de duas mãos pegou no machado, decidido a deitar abaixo aquele poste que se lhe metera ao caminho.
Mas quando dirigía o gume afiado ao tronco esbranquiçado do eucalipto, ouviu um grito e falhou o alvo.
Malfadada machadinha que lhe fugiu ao pé esquerdo e enterrou a lâmina no peito protegido pelo cabedal ensebado da bota. Mas fina do uso, escachou-se numa fenda e deixou o pé desarmado numa ferida esbeiçada.
Caiu por terra e naquele momento nada mais havía que o seu pé, todo ele era um pé, tudo na serra era a dor que sentía.
.
(continua)

6 comentários:

papagueno disse...

Epa essa doeu! fico á espera do resto.
Beijos

MIMO-TE disse...

Ai!....Como gostei do que li! :)
Diz-me onde está esse Zé Grande? Onde encontrar um igual? :) Pois é.... já há poucos!...:))))
Vou regressar para ler a proxima parte, não demores :)))

Tenho um desafio no meu blog. O tema é pertinante.Alterei-lhe as regras:) por diversas razões. Mas depois de pensar achei que havia mais uma, é simples e verdadeira, adoro reunir amigos, partilhar opiniões. Eu Respondi ao desafio, fui sincera, gostava mesmo de poder ser 100% livre, mas....

Vai lá, adoraria, pode ser?

Beijos linda

ASPÁSIA disse...

ESTÁ UM TEXTO MUITO BEM ELABORADO. PRENDEU-ME COMPLETAMENTE À VIDA DO ZÉ GRANDE.
PARECE AQUILINO OU TORGA! QUE ALIÁS NÃO LI MUITO.

TENHO OUVIDO OS TEUS TEXTOS GRANDES ATRAVES DO LEITOR DE ECRAN POIS INFELIZMENTE TENHO AANDADO PESSIMA DOS OLHOS... ANDO A SELECCIONAR MONTES DE PAPEIS ANTIGOS, TEM DE SER... E OS OLHOS É Q PAGAM, CHEGAM À NOITE À NET MUITO INFLAMADOS :((

BEIJOCA GRANDE COMO O ZÉ!

Gasolina disse...

Papagueno,

Deve ter doído imenso!

Beijo e cá te espero!

Gasolina disse...

MImo-te,

As tuas visitas são sempre muito coloridas e essa exuberância agrada-me.

Irei ao teu blog, concerteza.

Bjs.

Gasolina disse...

ASPÁSIA!

TOMARA EU CHEGAR AOS CHINELOS DE UM DESSES!

MAS FICO MUITO CONTENTE (E VAIDOSA) QUE ESTA "VERDADEIRA" HISTÓRIA TE TENHA AGARRADO!.

BEIJOS GRANDES, GRANDES PARA TI.