
Deu dois largos passos atrás. Ergueu o queixo e apontou a vista ao edificio esboroado pelo tempo, um rosa salmão desbotado nas manchas de humidade bolorenta corroendo a fachada de meio até ao telhado, florões pintados com ar de fresco perdido encolhidos entre duas colunas dóricas enquadravam, apercebía-se, uma varanda de ferro forjado que havía sido majestosa e que muitos cortejos vira passar.
Os prédios contíguos havíam sido tapados com redes verdes grossas e protegidos por escoras, não fosse o impacto da gigante bola de ferro fazer perecer também os seus vizinhos. A rua fechada, sirenes, luzes rotativas, os Bombeiros, individualidades da Junta de Freguesia, um representante da Câmara, a Protecção Civil, a empresa de demolição e um guindaste e muita gente. Muita gente. Os que vivíam naquela rua e a idade permitia ainda os passos andados e os filhos dos filhos daqueles que outrora havíam tido lojas de comércio e havíam passado de geração em geração e os outros, aqueles que só vêm para apreciar o espectáculo e contar depois, a sua versão romanceada.
Trouxeram-lhe um capacete de protecção e recomendaram que se afastasse.
Ele só olhava. Sentía no peito uma pressão que o atormentava e ao mesmo tempo uma alegria que lhe parecía explodir quando olhava a varanda imponente e se vía ladeado pelos avós, num ano do meio de 60. O avô trajava de negro, camisa branca e gravata riscada, emblema da sociedade recreativa na lapela, chapéu de feltro; a avó estava muito elegante com os seus olhos azuis de safira, ataviada num vestido às bolinhas e até tinha posto o anel de pérola do seu noivado, reservado para ocasiões especiais. Ele estava eufórico, os calções de veludo azul marinho davam-lhe frio nos joelhos mas pouco importava, pois aquela bandeirinha de Portugal agitada freneticamente na sua mão dava-lhe todo o calor que precisava. Já sabía o que tinha que fazer: quando o Sr.Presidente passasse à varanda engalanada com ricas colchas de cetim ameixa, só tinha que que gritar "Viva Portugal! Viva o Sr.Presidente!". Pulava, pulava muito, tentava enfiar a cabeça entre as grades de ferro forjado mas a avó estava sempre a puxá-lo pela jaqueta e a mandá-lo ficar quieto. E o Sr.Presidente que não aparecía e as flores que cobríam o chão da rua principal estavam já a perder o viço e até o céu, de repente, se pôs escuro e o avô temeu que chovesse. Começou a impacientar-se e para passar o tempo nada melhor que tentar acertar nas cabeças dos que passavam lá em baixo, com um cuspo puxado a custo para a ponta da lingua, formado numa pinga branca e espumosa que guardava até o alvo estar na mira da sua boca. Acertou em muitas cabeças, a maior parte delas cobertas de chapéus mas também algumas completamente calvas, que fizeram os seus donos olhar para cima, para espanto da avó e um grande safanão nele, que agora o avô não estava para brincadeiras e já tinha proferido um "mau-maria" muito azedo.
Que aborrecimento! O Sr.Presidente tardava e ele, prisioneiro das boas maneiras impostas, aborrecía-se... começou a descascar o varandim de madeira com alguns furinhos aqui e ali, e naquele entretém de sacar lascas e farpas lá apareceu o homem que todos esperavam.
Foi uma festa! Ele foi o que gritou mais que todos, o que mais rápido acenou a bandeirinha mas o Sr.Presidente lá embaixo na rua florida, só levantava a mão direita e meneava a cabeça gentil como uma marioneta para as alas formadas, nunca olhou para ele, lá em cima! Isto deixou-o furioso e segregou uma grande cuspidela que embrulhou na ponta da lingua e catapultou em direcção às costas do homem!
(continua)
8 comentários:
A falta de sensibilidade tornou-se um costume...
Deixo um beijo
*
uma metade,
de um triste todo,
chamado portugal
*
xi
*
Lu@r,
Infelizmente como concordo contigo...
um beijo
PoetaEuSou,
Permite que reformule:
Uma metade de um triste tempo, que eu amo Portugal.
BEI/de MARÉ
"prisioneiro das boas maneiras impostas" ehehheh impostas...
Que bom que já não temos que cuspir! :)
Que bom que os meus filhos podem respirar à vontade, argumentar e explanar as suas opiniões. :)
Deixo mimos e parabéns pelo excelente texto que nos apresentas.
Foryou,
Haja riso!
Mimo-te,
Muito obrigado pelas palavras carinhosas.
E tb. por entenderes tão bem o valor da liberdade.
Beijo para ti.
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