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sexta-feira, 27 de maio de 2016

Bóris




O meu menino Bóris está muito doente e temo o pior.

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Sem badaladas


 
Entre a véspera e agora, diferença alguma se faz, os olhos pestanejam a humidade bastante para seguirem mas o sono não dorme, o corpo não verga e a vontade de um e outro ou um ou outro se aconchegarem a ver se chega nem se quer na tentação se cogitam, avanço-me sem moléstias de contagem, mecanicamente o relógio encanta as paredes no fundo da casa a bater horas como um pássaro preso, muito bonito, mas dentro duma gaiola.
Quero lá saber, os dedos colados nas páginas brincam às mercearias, uma dose de letras bem pesada e uma dobra no cartucho para que não se vaze no grão, aparo linhas com retoques em A que se iniciam nos parágrafos muito deitados, comentários de quem me critica ao lado e encosta a orelha sem paciência para explicações de meia-tigela sobre a necessidade de me encher de coisas bonitas ao redor, para quê tanto detalhe?
E o desgraçado lá dentro a gemer, só, uma volta que fosse, até meia-volta que fosse na chave enfiada no furo e alimento bastante para gritar mais uma já lhe daría a força, mas fica-se, esganiça-se.
Termina-se na minha tinta todas as canetas. Todas as páginas e o caderno que ainda nem a meio vai. Talvez um pedaço de cansaço, um bocado de horas que não ouço.

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Contradições



Há dias infindáveis que se desejam recortados do calendário, inexistentes, desmemoriados. Um acumulo de horas que não aproveita ao diabo porque tão pouco é do mal, é da ineficácia do tempo, do esgotante passar dos ponteiros a baterem no rosto sem que se sinta que houve vingança, vitória, um lampejo de coisa vencida, é correr sem saír do sitio e desgastar o chão até a terra nos cobrir a boca sufocando o grito de exaustão.
Há dias em que se pede o que não se diz.
Porque não se consegue aguentar mais o que se tem.
E porque só se conhece o que se tem quer-se o indesejável.

 

terça-feira, 24 de maio de 2016

Esqueço-me que é Maio

 
 
 
Acontece que nem me risca que é Maio, dias houve em que serenava os olhos dizendo-me olha o mês do coração, sabía-me bem como um desejo de final do Ano, ando tão ocupada que me distraio do que me distraía, as linhas da poesia parecem assemelhar-se a carris de combóio que atravesso a correr enquanto o dito me sopra na queda humilhante a quatro encarvoada.
Acontece que me distraio com a organização dos outros, perdi a noção de encostar o queixo à concha da mão e deixar-me a ficar a sonhar com a esperança de voltar a ver o mar em breve, que Maio é esperança de Estio amornado, paixões novas paixões que mesmo das conquistadas sempre se renovam na descoberta, outras latitudes, desorganizadamente achava-me e perdida ría de mim.
 
 

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Não me apetece mais



Cansei, fartei-me, já nem me apetece explicar as razões porque está mal ou bem, deixou de me interessar, porque ao fim de muitas batalhas a exaustão chega, a estupidez penetra e não há consolo na paciência.
Basta de vampiros a sugarem-me a informação na necessidade de só mais uma, só desta vez. Só na vez em que o analfabetismo grassa e se elege a incompetência enaltecendo o amarelismo do jogo duplo das [in]confidências [re]passadas em míticos fóruns que se querem para diminuta audiência impoluta que não passa cavaco à rataria incapaz de assimilar a ordem superior de quem se acha tão alto que precisa de o dizer.
Não quero mais brincar, não me apetece.
Fiquem com tudo, engulam e engasguem-se.
Chega.
Já disse, fartei-me de dizer o mesmo, contar, explicar, ajudar, inspirar e até cem aguentar por mais uma década, mas não há pulmão que não estoure de tanto encher e assim, retiro-me, não brinco mais, façam vocês os vossos jogos que eu estou-me nas tintas para tudo.
Não era isto que queríam?

domingo, 22 de maio de 2016

A imperfeição



Como sempre, à madrugada junto pertences e abalo-me, uma trouxa de pouca cousa que no regresso venho carregada de mais mas aliviada do que me vinca a testa, o sobrolho. Nem sempre trago certezas às duvidas com que subo a colina que se acrescenta de cada vez maior por cada etapa que a olho erguendo a cabeça para a admirar, de repente fico tão pequena e até as perguntas que levo se assemelham a respostas que já foram prestadas, uma lição que parece não ter aprendido, então repito e o caminho alonga-se solitário.
Mas é nessa quase desolação, na sensação de desemparo, que acabo a encontrar as costas do meu peito, uma ressonância de mim mesmo nos defeitos, imperfeições, inacabada de tanto que aos poucos me construo, me conheço, me pacifico no reconhecimento da estrada que refaço ao voltar, tropeçando, caindo e erguendo-me com a minha preciosa carga que sou eu posso carregar.

sábado, 21 de maio de 2016

Tudo deles, tudo meu


 
Deixando ou não fragmentos por lá, o que de maior interessa e me constitui enquanto verdadeira chega aqui. Ao que faço das palavras. Ou o que estas se impõem azulando-se nas páginas muito brancas do meu caderno. Uma liberdade prisioneira, uma vontade obrigada, um sabor a sangue, um querer estar sem saber quando foi e como foi que o soube, aprendi que as coisas que sei não vieram pelos olhos abertos, não todas, muitas chegaram pelas frases a desenvolverem-se ligeiras sem que o custo me tomasse a mão ou o cansaço das espáduas ou o exercitar da adivinhação, escrevi-as como se nascesse na experiência ou a morte me tivesse levado de todas as vezes que a levei a enterro.
E ainda era eu. E os mais que respiravam por outros tantos poros da minha pele, falas contínuas ou perguntas sem resposta, nada a meu tempo, tudo deles e ainda era eu. Mais livre que nunca, verdadeira.

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Separação



Corto o fio e entro noutra dimensão desejando um banho, chuva, uma água que me limpe de restos mesmo que só pensados a esquecer o que deixo nas costas, liberto-me do cordão e quase corro, urge a distância em que me afaste do que deixo até ao regresso, um partir e voltar recorrentes na sensação de liberdade e contenção repetitiva como se me perdesse punitivamente num labirinto.
Talvez que de tanto ir e fugir, fragmentos se fiquem por lá, expectantes de uma maioria que inevitavelmente aporta e se cola atraindo, unificando-se de novo, rompendo outra vez, bocados suspensos que ao final, nem todos ficam , nem todos atingem a livre intenção de deixar.

quinta-feira, 19 de maio de 2016

Traços de um tempo inventado



Esfrego entre palmas instantes de existência clandestina, todos os minutos que nos foram permitidos viver sem o relevo da invenção sujeita a parâmetros condicionados ao tempo, a fuga pelo devaneio ou o querer estar, quero-te aqui agora que te penso sem a memória doída ou amedrontada dos anos que se passaram desde a última vez que respondeste de um outro lado de um fio invisível sou eu, irreconhecível o teu tom de voz, desligo por não seres a poeira do que se solta das minhas mãos, das nossas mãos sem se tocarem, a distância sempre foi o nosso melhor aliado nesta profusão do sentir e querer e não deixar porque afinal isso era o melhor das histórias inventadas e até mentíamos tão bem quando o desejo nos aconchegava o silêncio e não estávamos.
Não estávamos.
Criávamos imagens de despedidas para justificar não estar e voltar contentes numa simplicidade quase grotesca de perdão. Quero-te aqui, mas não a carne do teu corpo, só a lembrança do que serías clandestino, traçado rápido, ágil e volátil a mudar-te o timbre, a cor dos olhos, não estás quando me respondes desse lado quem é, quem é incessantemente à minha respiração perguntada na mutez suspeita de quem sou eu, pois não sou, escrevo atrasada o que resta de ti até completar a hora, esfrego as mãos e encontro nada.
 
 

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Conversas da Esfinge



Há um e outro diálogo que por vezes, dada a sua natureza e obviamente, os seus interlocutores, entra no campo das reticências. Nem tudo é dito até ao final da frase, nem tudo é completado para certeza de um dos que se mantém na conversa, nem tudo é afirmado ou negado para total clarificação dos participantes.
A certa altura, a conversa entra no campo das metáforas.
Quase parece perigoso dizer declaradamente o que se pretende. Insinua-se. Contorna-se. O verbo retorce-se de tal maneira que cada um fala de sua coisa e os dois - ou mais - acham que a resposta ou a pergunta é a adequada àquilo que pensam.
Na realidade, ninguém acaba a perceber nada. Subentende-se. É o chamado tira-se umas por outras, ler entre linhas.
Claro que este tipo de discurso é campo aberto a mal-entendidos, confusões, suposições directamente proporcionáveis à expectativa de cada um, o que vem invariavelmente gerar decepções, contradições, o dedo apontado do tu disseste e afinal! Lógico que outro se defende na parede da esfinge, um tipo de conversa abstracta e por enigmas, muito dado a derrotas caso a solução não seja favorável para o seu lado, eu nunca disse isso, se o entendeste assim, foi mal da tua parte.
As conversas da esfinge têm o pecaminoso paladar da exultação do sucesso, porque afinal até convencem o próprio do dom da palavra mas realmente, são conversas, e para tal são precisos mais que um e destes há sempre o arbítrio da escolha, de um tão semelhante dom ou melhor, mas sempre, sempre se mascaram num areal de palavras que escapam à certeza de uma distinta afirmação.
 
 

terça-feira, 17 de maio de 2016

Clarabóia

 
 
- Como é que te chamo?
Sería maravilhoso se tivesse tido a intenção de lhe pôr um nome, guardá-lo, não só guardá-lo na gaveta mas nos segredos como um propósito irrevelado que não se pode ou não se deve no momento trazer à luz, sabe-se, todavia mantém-se presente no pensamento como uma claraboia, verte a claridade bastante para que se permita dizer que é um cómodo a acesso a luz natural mas na verdade sem janelas.
Na verdade tería sido maravilhoso arranjar-lhe esse propósito, sacá-lo da pasta castanha sem admiração por sempre o ter sabido por lá, o nome por lá, apenas adormecido até as mãos o segurarem de novo e murmuram o nome secreto.
- Como é que te chamo?
E aí chamava, rebaptizava o que sempre soubera.
Mas não lembro, não sei tão pouco se lhe pus nome, se havia nome quando nasceu nas letras que se escreveram nas páginas agora achadas, porque só agora folheadas de novo como se o propósito fosse terem ficado secretas sem nome até agora, ou esquecidas porque assim tinha de ser.
Não sei como te chamo, leio-te e admiro-me.
- Como é que te chamas?
Não acho demais não teres nome, tão mais solene teres ficado incógnita por um tempo que nem sequer datei, adivinho até falta de intenção nesse acto, uma claraboia que apenas existiu como isso mesmo e nada mais.
Afinal, até há coisas que se escrevem que são exactamente aquilo que se escrevem e não pretendem ser outras ou significar outra coisa. Mesmo que dali a muito tempo, mesmo que não tenham nome.
E isso também tem o seu interesse.

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Travessias do Rio - 12


 
Os estrangeiros deslumbram-se com as margens, não cessa o movimento constante de sentar, levantar, abrir janelas e vazar o tronco afora, caminhar pelo sobrado do Cacilheiro, espiolhar aqui e ali, escancarar a porta da cabine de Mestre e pretender fotografar, um falatório incessante à mistura com gargalhadas sonoras e muito apontar de dedos.
Os nativos fascinam-se com este desassossego.
Procuram assento perto, rapam do telemóvel e exibem as mensagens com termos em inglês, mostram os jogos, as fotos, disparam igualmente para as margens tão batidas e ignoradas no dia-a-dia, metem conversa num tom elevado como se os decibéis e os olhos muito abertos ajudassem à compreensão melhorada do seu vocabulário.
No tempo dos descobrimentos convivíamos todos numa miscelânea rotineira de culturas, ninguém mais estrangeiro, todos diferentes e tão semelhantes, margens do mundo a chegar e a partir.

 

domingo, 15 de maio de 2016

Sigo-a [escapatória de um tempo feliz]


 
Desta vez nem tive de lhe pegar na mão, segue-me a pouca distância em silêncio, o ruído dos passos  no caminho sob os pés cuidadosos a mastigarem cada folha, gravilhas, pequenos ramos perdidos que terão porventura servido de lápis na terra a desenhar esquemas de encontro a uma rua principal. Não falamos quando paramos. Não precisamos. Sabemos. Acocora-se de frente à escada que dá para a porta da casa, olha os vidros, brinca com um seixo agilmente entre os dedos. Fico-me estátua a observá-la, assim tão pequena, um pedaço amarrecado de gente, uma corcunda coberta de guedelhas a imitar-se de infanta num jogo de pedrinhas sem a ladainha, não vejo nada do que vê, decadências de uma casa que evito olhar porque sei onde possa levar-me. Não digo nada. Os vidros partidos reflectem mil vezes os restos de coisas que não estão vivas mas que também não estão mortas e o ar pesa-me no peito como se me dobrasse. Ela não está mais aqui. Ergo-me. Lanço a pedra à janela e quebro mais um pedaço, mais um vidro na memória, uma escadaria que subo e desço sem precisar de guia ou mapa, fui feliz aqui, sou feliz de muitas vezes que aqui retorne, nos gritos das sardinheiras encarnadas e no apelo dos meus avós ao caír da tarde para o lanche, nos mimos dos bichos dos telhados e no reflexo das bolas de sabão a subirem, sigo-me.

sábado, 14 de maio de 2016

Universo(s)



Apesar dos safanões, do encolher dos ombros quando o horizonte o deixa de ser tombando para dentro dos olhos, é aqui que volto, me sento, que grito ou nada digo no receio de afastar a que fui da que sou.

sexta-feira, 13 de maio de 2016

Um dia cresço. Talvez



Até onde poderão ir o alcance dos pensares, até que medida do tempo, um dia é-se demasiado isto ou aquilo, as permissões terminam e não há mais lugar a desculpas, engavetam-se desejos como páginas projectadas na esperança de deixarem de ser esboço. Deixa-se de ter idade para a coisa, para as coisas, parece mal ou assenta-lhe disforme ainda ter trejeitos de verde sonhar quando estes se guardam para a falta de tino ou cabeças de vento, agora vistos de tão perto assemelham-se a velhas gaiteiras, senilidades, olhos fechados ao maduro do cacho a pender para a queda, maniazinhas de quem se acha artista que deste tudo se perdoa, admira, aplaude e convida a mais no bizarro que se espera.

Sempre me deslumbrou infantilmente, a palete de cores em borrão exibida.
Sentia o mesmo quando entrava numa loja de tecidos e a multiplicidades de tons alinhados me faiscava nos olhos as palavras a descobrir.
Como se chama aquela cor?
E não sabendo, catava na natureza o que de mais próximo imitava a tintura feita no pano. Depois no verbo. Nas páginas. Até no querer que as sapatilhas poderiam entregar nos passos. Dar vermelho de sangue, branco de neve.

Terei porventura ficado travada no crescimento que as cores do pensar continuam a desenvolver o fascínio de as alimentar.
Não sou artista mas deixo ir-me sem tempo ao que o sonho ausenta do corpo.

 

quinta-feira, 12 de maio de 2016

Fios de água


 
Creio que se entrasse nesta tina gigante alguém aflito haveria de me retirar em braços, não cuidando pela minha saúde mas o recato do sitio, a compostura que se impõe no distúrbio que eu haveria de causar. Imagino. Até as pobres plantas sedentas nesse dia haveriam de arrebitar.
Navego na remada que os meus horizontes permitem [lá regressa a velha frase, eu não tenho paredes] e deslizo quebrando o ruído da queda de água interrompendo os fios contados tantas vezes que me esqueço agora quantos são, as águas são sempre novas, ninguém a impedir e todos a quererem entrar na minha nau, um gigante por cada um que pede, uma jangada por todos os que desconfio. Não quero ninguém, o sonho é meu e levo comigo quem [não] atravessou o Rio, faço desta concha de água um oceano de desejos, o Gaspar imponente à proa.
Alguém descuidado atirou uma beata à cascata, vejo-a boiar engelhada. Ninguém a punir.
Recolho da minha roupa um pelo que quero que seja dele, mas pode não ser, talvez sejam restos do meu barco que não consigo afundar.

quarta-feira, 11 de maio de 2016

Dias de mim



 
Há dias de mim em que não pareço eu. Em que o cansaço me destrói o corpo, a mente, o sentir, todos os sentires da vontade e do querer e eu só quero estar comigo mesma. Nem mesmo com os meus eus o desejo aparece com força.
 
Há dias assim, em que o casulo se reforça apertando à minha volta, os dias de mim em que o mundo se veste da minha pele e da minha língua à volta do céu do boca a empurrar palavras que por vezes prefiro não lembrar, preferia não saber pela memória revisitada das saudades dos que não tenho mais perto de mim.
 
Porque é tão verdade que dói insuportavelmente, porque ele há dias em que custa passar apenas com a lembrança, é preciso mais, é preciso que cheguem e me toquem e falem comigo fazendo ruído das vozes a dizer o meu nome e não o silêncio do meu pensar nas suas vozes imitadas na minha para não os esquecer.
 
 

terça-feira, 10 de maio de 2016

As que se merecem


 
Em que ponto da vida de cada um as palavras começam a rarear - as faladas, digo - não sei, mas era uma interrogação que me fazia porque razão as pessoas mais velhas eram tão parcas no seu dizer. A certa altura convenci-me que sería por falta de companhia, essa ausência de interlocutor deixava-os mudos, mas outros haviam que murmuravam sem ninguém para lhes responder e desses explicava-se que a idade avançada os tería tornado tontos, coitados, já sem saber de que mundo eram falavam para o ar.
Acontece que cada vez mais me apetece falar menos, explicar, retalhar ideias até do outro lado atingirem o que se passa, esgotei-me na decepção das mentiras, dos disfarces, na transformação de tirar verbo da minha boca contextualizando-o em cenários à medida de quem o molda, perdi a paciência das lutas na generalidade e deixo quem não merece na ignorância.
Mas a redução das minhas palavras não significa que me ponha a jeito, que me disponha a bel-prazer de ouvir e ser alvo e sem dor, aceite a estupidez alheia. Não o aceito mas ignoro o que me poderá desgastar sem acrescento, do outro lado nunca chegarão a ouvir.
Afinal, os antigos talvez tenham outros eus a quem murmurar sem desperdício. Uma sapiência comedida, leve como o ar.


segunda-feira, 9 de maio de 2016

Plano A


 
Metade ficou agarrado ao que hei-de encontrar, um passado e um futuro, colisões em conflito se estáticos aguardam quem dê o primeiro passo. Afinal avanço eu na semana, 2ª feira, colo o rosto ao vidro e aproximo muito a respiração à transparência do que desejo saber encontrar, planeamentos por vezes servem de muito pouco, a inspiração do plano B  surge como o herói do dia  mas a experiência e a vontade levaram-me o manto dos super salvadores, desenho um quadrado no bafo do vidro, uma grelha e tudo se resume a uma prisão.
Metade vai andando, a outra recorda-me os rabiscos de meias-caras que sempre tive o hábito de desenhar, uma confusão penso agora, mistérios achava eu, a que não se vê é o apetite da descoberta, talvez um defeito a esconder, uma fuga à grelha para tapar outras misérias de outras tantas metades. Passados em colisão à espera de passos em eternas Segundas-feiras que já se adivinhavam salvas por super-heróis com idade de reforma e males de respiração no peso de suportar o manto.
Avanço, nem metade de ontem nem outra de tanto na expectativa do achar, vou. Hoje, farei um boneco de corpo inteiro.

domingo, 8 de maio de 2016

[Parar para] Escrever



Empurrei devagar e a duas mãos caderno, caneta, a tampa a agitar-se reboluda no seio das páginas à espera do decote que a cobrisse de mais letras, hoje não, mais não, a decência pede que pare por aqui e desande, contradições de quem não anda e resta, uma réstia de decoro enquanto ainda há tinta que core no depósito a saber que as frases por se escreverem não virão no esforço do assento e na permanência do ficar, empurro devagar a vontade e caminho-me noutras linhas. Ao sol. À sombra projectada vigilante e silenciosa, incomodativa, uma cópia transferida e empurrada devagar que me conta um, dois, três, quatro passos, quantos passos, nenhum jogo de brincar, fugas impossíveis na solução, passeio as minhas frases pela aragem do dia e vejo folhas de árvores em cadernos como páginas verdes do meu caminho.

sábado, 7 de maio de 2016

Instantâneo - Episódio dezassete


 
Pediu educadamente um café, uma fatia de bolo caseiro, apontou na campânula de vidro cinzelado a escolha entre o mármore e o laranja, quería o primeiro, a ondulação dos dois tons gema de ovo-chocolate era-lhe apelativa. Esperou. Voltou a chamar e repetiu o pedido. Aguardou. Olharam-no e vieram perguntar se estava atendido, pela terceira vez disse o que pretendia, indicou com o dedo espetado o bolo mármore. E também café. Voltaram costas. Agarrou um jornal esquecido pelo balcão, folheou e encontrou as palavras cruzadas, meia-dúzia de letras inscritas nos quadradinhos e o resto por adivinhar. Levantou os olhos e observou os empregados, vigiou o seu pedido, o bolo mármore já desbastado, a máquina de café num desassossego igual à registadora. Voltou ao cruzadismo, procurou os números e a intersecção das letras. Sinónimos. Levou um susto quando alguém bateu com o suporte de metal dos guardanapos de papel na sua frente. Ajeitou-se ao banco e esticou o jornal ao balcão para ganhar espaço. Chamou outro empregado e perguntou pela demora do serviço. O empregado desapareceu sorrindo. Três letras. Trouxeram o café. Esperou pela fatia de bolo mármore. Chá escreveu. Deu um golinho a poupar a bebida até o bolo vir fazer companhia. Abreviatura leu. Tapou a chávena com a palma da mão e olhou ao redor. O bolo mármore havia desaparecido. Chamou alguém. Alguém. Bebeu o café morno até ao fim. Dobrou o jornal pela metade e deixou uma moeda em cima do balcão. Um empregado apareceu, recolheu a moeda e agradeceu a gentileza.

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Mayo a Madrid - 6


 
Recolho os meus pertences do quarto, rapo os odores à lembrança para mais logo e já entre a euforia do contar, calar-me, hesitar entre a descrição e a revelação puxar à língua o picante adocicado que me há-de restar e que para todo o sempre direi primeiro para mim quarto de Madrid, depois só para alguém especial, quarto de hotel em Madrid sem mais explicações.
Olho ao redor e fecho os olhos a guardar cores, o lápis que usei nas noites para escrever talvez me devesse acompanhar por já ser meu mas decido deixá-lo para escrever outras estórias pela mão de outros que se hão-de deitar nesta mesma cama com saudades da sua.
 
Hoje levo saudades parvas desta.
 
Também da alegria de Madrid. De Lenita. De dios e hombres e coños. E saudades de gentes que pressinto que não vou ter por perto embora os tenha. Malditos presságios. E que vão tão bem em língua espanhola neste contraste fulminante entre a alegria ininterrupta e uma quase tendência para o drama da facada para se dominar a cena como una película de Pedro.
Fecho a porta do quarto, Buenos Días cumprimentam.
 
Arrasto a minha mala vermelha maciamente e entro em casa, como foi?
Estupendo.
 
 
Maio/2014

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Das portas & janelas - Vol.2 - Esboço nº 6



 
As escadas vieram depois.
Do desconforto das irregularidades das pedras grandes a servirem de degrau até à porta já ninguém quer lembrar, ninguém tem vontade de ter presente o descompasso do susto, os beijos às escuras, os toques profanos de senhas combinadas como que a dizer sou eu, abre que sou eu que venho buscar-te e levar-te de vez. 
A memória tem destas coisas, lava a sujidade da consciência e deixa de depósito os contornos de uma história a contar.
Não contam que era a porta das traseiras, os fundos, o de trás, o dê a volta para que não se veja quem não tem importância.
Fomos importantes, somos importantes.
Fizemos daquela porta carne de gente, sangue de uma aldraba que se aquecia por cada vez que alguém a cingía a bater na madeira, o chamamento aos do fundo, aos da vergonha, aos que da noite iluminaram degraus, ombreira, pátio e até o padre veio para jogar uma água benta, não fosse o caso de lhes termos deixado enguiço na soleira que adentrasse e fizesse maleita ao senhorio e afinal eu só te quería bem, a minha mão a aconchegar-se à tua por perto sem ser no arranhar da porta por saudades de te ver fechá-la nos cuidados de sermos agarrados como malfeitores.
As escadas vieram depois de partirmos.
Rápido.
Mas só para compor que depois de nós é tão só uma porta. 
 
 

 
(in Das portas & janelas-Vol.2, Agosto-2015)

 
Todas as fotografias da Colecção Das portas & janelas-Vol.2 são da autoria de Eduardo Jorge Silva

quarta-feira, 4 de maio de 2016

Hoje preciso que me digas amo-te


 
Não acordei assim mas o mundo virou-se como um lacrau de pinças abertas e desprevenida ferrou-me, não sei que cousa terei feito eu que hoje todas as feiuras me alcançam e a realidade a abrir-me os olhos sem descanso de virar o rosto para o imaginado desalentou a força de procurar beleza onde a achar, por isso te peço que me ames esta noite e mo digas, repetidamente mo digas muitas vezes como se do acreditar fosse necessário ouvir-te na voz aberta de olhos nos olhos muito próximos até não sabermos se nos olhamos ou nos perdemos ou nos esquecemos quem somos ou o que fazemos sem ser respirar para dentro do peito um do outro a dar tudo o que não se consegue dizer por ser tanto e haverem tantas palavras que afinal não sabem dizer o que vai por dentro da loucura do amor que passa do amor, uma cousa simples que mata e eleva como heróis, um segundo complicado que tapa a boca e que eterniza e que se quer lembrar mas já não se consegue explicar, tudo isso e nada, nada a dizer, um dedo a deslizar pelo cabelo e a voz que ondula na mecha amo-te, repetidamente nada e tudo, irrepetíveis pedaços de nada que se agarram a sítios devorados na memória de histórias imaginadas mais bonitas, mais contadas, mais minhas, nossas, de quem as souber amar, hoje preciso que me digas amo-te porque o mundo nasceu feio.

terça-feira, 3 de maio de 2016

Travessias do Rio - 11


 
Não é um barco, é um rectângulo de plástico em tons de mimetizado azul para não incomodar tanto o meu Rio. Perturba-me entrar-lhe, sufoca-me o instante em que me põe do outro lado, mantém-me prisioneira quando baixa a rampa que lhe serve de porta e me lembra um castelo.
O catamaran que atirou com o Cacilheiro para o lado, tem vindo a levar-me e a trazer-me de mansinho, um ápice de desagrado alcatifado com as suas janelas quadradas muito perfeitas que não são de abrir, múltiplas filas de cadeiras que convidam à clientela a assistir a uma fita de cinema viva e renovada todos os dias, mas a que só se alcança meio céu, meia água, tudo o que a vista tem diante do nariz e olha lá.
Vejo-os contentes. Rápido. Moderno. Quase clinico.
 
Como me apetecia a garridez da pintura laranja vezes sem conta retocada a esconder a ferrugem dos anos e o engasgo do motor no ronco da madeira guinchada quando o cabo se esfrega esticado preso aos cais. E os Cacilheiros de dois andares, com prancha tirada à mão, e as travessias turbulentas em que o hóspede se entrelaçava à cadeira precavendo borda-fora...
 
Não é um barco, são estórias que me conto em 7 minutos.
 
 

segunda-feira, 2 de maio de 2016

O canto dos passos


 
Já procurei desenhar vários trilhos - imaginados e em vão - que me conduzam a alguns quilómetros para fora do perímetro onde se anicha a cachoeira, mas o ruído acaba por me perder do caminho inicial e serpenteio inevitavelmente repetindo-me, à volta das cadeiras desirmanadas das mesas, como um carrinho de uma pista em oito.
Já tentei também dar passos miúdos - reais e marcados - mas nem o barulho dos tacões consegue abafar a estridência do alto da água a despencar-se nesta bacia gigante, e vista de parte, direi eu mesma, depressa me internaría ou sería afastada dos demais por autismo profundo, já que o diminuto da área a percorrer limita bastante a exploração do espaço e é bom de adivinhar, de lá para cá, de cá para lá.
Resta-me assim o canto.
Cada vez mais amarrecado no empurrar das minhas costas na tentativa de fazer crescer paredes de cimento, conversas que escuto e às quais não posso fugir, não posso deixar de abanar a cabeça, nada de mim a acrescentar, a dar ou devolver, venho ao vicio dos passos esfumados e nem uma gaivota para um jogo de palavras trocadas entre beber e ter sede ou mais pobremente chover e chorar, um voo indiferente aos meus estados de corcunda e verticalidade.
Passo a perna pela frente da outra e enviuso-me.
 
 

domingo, 1 de maio de 2016

Flor ou Árvore, são palavras ao meu tempo


 
Eu que sempre escrevi em cadernos, pedaços de papel que depois entalava à laia de folhas soltas entre páginas dos primeiros já gordos e deformados, fui seduzida às malhas do virtual e a 1 de Maio de há 9 anos atrás ensaiei a Flor da Palavra à vista de quem passava. Falavam-me então, das maravilhas dos blogs e do que a as minhas palavras precisavam: Ar. Serem arejadas, perder a timidez e partilhar o que guardava nos benditos cadernos que não íam a lado algum.
Assim fiz.
Gostei.
Gostei muito. Detestei muito, decepcionei-me muito e encantei-me outro tanto. Com coisas sérias, com coisas fabricadas, com palavras sérias, com palavras copiadas, com pessoas reais e com pessoas que gostariam de existir mas nunca chegaram ao calcanhares do que puderam ser, porque simplesmente eram inventadas.
Mas eu segui. Como Árvore e com o verbo e no tempo que me apetecia porque no fundo sempre foi o que de verdadeiro aqui me trouxe e soube bem,  nem publicidade nem confissões ou qualquer outro objectivo obscuro ou clarividências que me tivessem transformado a vida.
Num passado recente, alguém se admirou deste blog ainda existir. De eu ainda nele persistir apesar de não haverem comentários aos textos publicados. Apesar - dizia, com um sorriso que entendo critico e mordaz - ser coisa de outros tempos, que ninguém liga já aos blogs.
É verdade.
Mas ligo eu.
A escrita tem destas coisas. É de modas. Cega como as modas. E eu sempre andei ao meu tempo.