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segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Se ele fosse (mais) forte - 1


 
Pretendo-me forte, quase invulnerável, nestas coisas de decisão consigo sempre levar a melhor por isso não sairei derrotada da determinação que acompanho com olhos fortemente apertados até doerem e as mandíbulas cerradas até sentir os dentes a ranger, sou forte, abano as mãos para libertar a tensão e solto um sopro rápido.
Não me comovo, não hoje, não por ser hoje mas por ser hoje o primeiro dia em que principio a nada sentir e me isolo de fragilidades que me descompassam no peito e na garganta, que me tiram o som das palavras, que me resguardo de gostares para mais tarde não me desgostar até sentir a nuca gelada e o estomago esburacado como se andasse descomposta ao Inverno eterno, não me desperdiço no arqueio dos lábios para sorrisos, para assobios, para músicas que não saiem da cabeça, para beijos tocados, apertados e molhados, para chamar o nome por apenas saborosamente dizer o nome, não me desgraço de novo levando as mãos ao peito procurando o peito onde pode ser o joelho porque afinal o maldito coração não me deixa e de tão forte que sou mais fraco ele é.


Dez.2015

domingo, 28 de fevereiro de 2016

O céu da boca (Palavras Reencontradas) 13



 
[...]
 
Dessa capacidade de mãos cheias, mãos a escaparem-se entre brechas de dedos a oferecerem-se do tudo e do todo que me preenchia e inundava afogando só encontrando alivio na segurança da caneta, muito parecia dádiva, entrega a outros que lendo, pediam mais ou criticavam, pediam ou surpreendiam-se pelo caudal, pediam mais e até exibiam menu a preceito.
Sem esforço correspondia, quase pedia que me pedissem sem eu ter que oferecer, sangrava-me do excesso que me consumia porque a verdade do céu da boca era tão egoísta quanto o prazer orgástico que me selava dentro de mim própria.
Não queria perturbações ou atendimentos a outras causas, as palavras perdiam-me mas achavam-me de novo num universo requintadamente diabólico, um fio invisível mas cortante. Não era eu e os outros de mim, sempre em mim habitantes, eram eu e os que amo, e também eu e eu.
Libertei-me do defeito, não das palavras.
Não totalmente, tenho recaídas por vezes. O verbo é tão solitário e exigente.
 
[...]
 
 
(in O céu da boca (Palavras Reencontradas), Agosto 2014)

sábado, 27 de fevereiro de 2016

Até arrepiar



 
Sair de cabelo molhado para a rua ou andar de pé descalço em qualquer estação pela casa sempre foram pertences de mim como a pele que me cobre, mesmo havendo quem refira em tom de comentário jocoso - mas não se coibindo de o fazer - que a adolescência já me deixou e as doenças e a decência maior recato me obrigariam a outra condição. Convenhamos que exactamente por já não ser uma infanta os apartes me fatigam.
Mas também por gosto de sentir a temperatura fria e a dureza do chão contra a planta dos pés, pôr-me em meia-ponta sem a atrapalhação do calçado ou deixar que o ondulado do cabelo se forme à medida que o vento me bate no rosto ou prendo um pedaço escondido na orelha.
Ou simplesmente porque preciso de sentir o arrepiado da pele quando a reacção do corpo quente do banho se contrai na diferença da temperatura e no repente se acha num dia de Inverno ou vislumbro os pés deformados pelas sapatilhas arrumadas e o peito se aquece nos sons do velho piano martelado nas aulas de barra.
Porque de repente, muita coisa, mesmo muita coisa deixou de me tocar a pele. E sentir é preciso.
 
 

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

menor ou Maior


 
Dizias tu a certa altura que tudo ía bem para não afligires os demais, os que te estavam próximo e sendo assim, calavas-te e nada me dizias, tão pouco me atendías, eu aos gritos pelo teu nome e tu num faz-de-conta que pelas redondezas não era o teu sitio.
Enganaste-me bem.
Eu a julgar-te de passeio, trote nos beiços como é teu hábito ou simplesmente distraído que é muito do teu vestir quando te encantas por adornos que só tu vês e afinal, das feridas nem um suspiro para minha desconfiança, só o orgulho da solidão dorida mas de pé como as árvores a machadadas resinosas e sangrentas, brilhantes, perfumadas. Mas tão peganhenta no meu querer-te que mesmo longe colo-me a ti.
Dizias tu o quê, que me esqueci das saudades que me batem mais no rosto do que essas parvoíces do evitar preocupação que não têm remédio, que do remédio preciso eu de ti, das tuas coisas parvas e detalhadas que só a ti lembram e nos põem a rir aos dois como se fossem de outros dois que falamos e troçamos miseráveis por sermos outros tantos que sofrem diferente do que cada um de nós somos.
Dir-te-ía tudo isto porque sei mas nada te direi porque não quero apoquentar-te e assim direi que estou bem, que tu estás bem e tu concordarás comigo na simplicidade dos pequenos tempos em que a aflição maior é estarmos um com o outro.
 
 

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Companheiros




A maior parte das vezes prefiro vir sozinha, caminhar sozinha, chegar até ao extremo sozinha e aí deixar-me ficar até alguém chegar sem me aperceber. Não há passos, simplesmente quando chegam já estão comigo. Ou ninguém chega e nesses dias fico a imaginar quanto tempo falta para ir embora e o que acontecerá até ser hora de partida, vejo a barriga das gaivotas muito branca e próxima da minha cabeça sem se assustarem. Os que chegam dizem pouco, religiosamente deixam o meu fumo em paz, sabem o que aprecio, põem-se ao meu lado, mãos nos bolsos ou no meu ombro e deixam-se estar, sinto-os a olharem de soslaio mas uma observação ao céu, ao Rio é o bastante para um conforto e nada mais é preciso.
Apago o cigarro, eles já se foram.
A maioria das vezes era eu a única pessoa a caminhar por aqui fora e ir até onde não havia mais caminho, só o varandim de protecção e depois o salto para uma morte certa.
Ultimamente tenho encontrado outras gentes que caminham no mesmo sentido que eu, sozinhas, até ao fundo e até encontrarem o extremo. Ficam por lá. Não sei se têm quem os acompanhe na sua curta estadia do prazer do fumo como eu, não os vejo porque não nos é permitido tal. São pedaços que chegam sem passos e apoiam a mão no ombro ou deixam-nas no bolso das calças, mas estão junto de nós.
Apago o cigarro e um outro caminhante de extremo cruza o olhar comigo, nada dizemos.
 

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

C782 - Casalinhos




Parece que está tudo mas nem todos estão. Ou estarão a mais os que não vão, que embora não estando seguem presentes. Não é adivinha nem é pregão, também não é maldição mas será história do corno que é como quem diz, é sempre o último a saber. A seguir. A saír. O que seja.
Seja do solavanco ou do motor, seja do aperto de tanta gente ou do desconsolo do assento, ele há mãos que se amparam, esperam, apertam, escondem e até acham que nunca serão avistadas.
Porém, o olho egoísta de não ser o catrapiscado, zarolho de sortes no coração acha-se púdico no palpitar e enregelado pela visão traiçoeira dos amados viajantes faz-se boca no mundo e de pequena ao ouvido do que segue ao seu lado, segreda a vil descoberta com a recomendação de estado:
- Não é para contar a ninguém!
Claro que os roncos do motor mais a surdez do ouvinte e ainda o espanto da revelação, elevam-se a um desdobrar de palavras que os passageiros próximo escutaram tão bem - ou tão mal - que no fim da viagem, as facções estão escolhidas.
Ele há quem apoie o amor, incondicionalmente, e mesmo sem conhecer as figuras, lastima o destino de tal par. Outros ofendem-se pela pouca selecção dos que embarcam, a meias com gente de bem e o outro a ser enganado. E ainda os que só apreciam a falta de nada dizer para além do comentário à vida alheia.
Siga.


 
(in As fantásticas aventuras do C782, Janeiro 2015)

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Rasgão [num desenho]



 
Desenhei a traço curto, pontilhado, depois geometricamente imitando os cubistas, idéia que rapidamente abandonei porque flores na minha perspectiva não se colam a dimensionamentos aprisionados em arestas e precisam das imperfeições do arredondamento e da diferença de tamanhos desequilibrando o espectável para a harmonia do belo, voltei às curvas e aumentei a largueza, sombreei, dei relevo a algumas pétalas merecedoras de mais carinho e quando dei por mim, a página branca tinha no centro uma variedade intrincada de algumas espécies apenas recriadas na minha imaginação, agora atadas no plano de um bouquet a esferográfica, a conversa de telefone no tinteiro.
 
[É aqui que se abre um rasgão no tempo desenvolvendo uma acção paralela, não um renascimento mas uma Primavera como se fora tudo de 1ª mão.]
 
O braço curvado ligeiramente para segurar o ramo fresco de jarros, rosas ou orquídeas ou até um girassol afanado de um campo ou quintal vizinho a destoar na perfeição da compra da florista, seguia orgulhoso como um peso que se carrega aparentando a pluma cuidadosa que não fuja, a pressa era chegar e dispor, mergulhar os pés verdes na água fria antes que o viço - mais do meu olhar guloso - a mirar ao longe as flores, perfeitas, incólumes ao dia profano dos homens.
 
[Incapaz de fechar o meu desenho na pobreza de um parêntesis recto, enquadrei-o numa moldura vincada com muitos sublinhados.] Do outro lado da linha, despediram-se desejando-me uma boa semana.
 
 

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Fardas



 
Visto a segunda-feira sem engelhas, lavada, um cuidado no deslizar por mim sentindo o frio da espera até se aquecer na pele viva e quente cobrindo desde os olhos fechados até aos pés fincados como raíz, uma terra que não se imagina nem desenha, acompanha como base o boneco fardado que empurro devagar evitando os estilhaços.
Da que se retorna no reflexo do espelho não tenho roupa que melhor me assente.
É tudo muito mais do que não se despe, tira, guarda e volta a pôr. É uma figura completa que enfio pela cabeça, também esta a condizer, também esta com muito de ficar, tirar poupada nas engelhas que lhe possam fazer feio ou cheirar azedo na conservação da semana pelo descuido do ir, pelo completo do conjunto de roupa de dentro, pele de mim, quente e viva.
Visto-me outra para uso de bonito.
Empurro-me.

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Sem titulo



Levantou-lhe as pálpebras com os dedos e perguntou se dormia. Sim, dormia, que a deixassem sossegada e virou as costas ao tecto ignorando perguntas, dedos pelos olhos adentro rompendo sonhos que não tinha, intrusos no quarto sem permissão de se chegarem tão próximo e ainda por cima esquecidos do silêncio obrigatório no despertar. Não há conversa, não se quer conversa, os monossílabos são um sacrifício na hora cinzenta, cinzento escuríssimo que a vontade de abrir a boca é só para dar vazão ao bocejo. Já não dorme, o fingimento da cabeça enterrada na almofada descobre perguntas e aborrecimento [não não durmo que queres e quem és tu vai-te embora] como um refluxo, sem ruídos ao redor mal ousa saír da casca improvisada mas o sono esvaiu-se por um buraco invisível da fronha ou então nalgum furo que os dedos abriram escapado na pele que cobre os olhos. Nos cotovelos espreita o cenário, empina o traseiro espreguiçando a vontade de deixar a noite e de joelhos, mãos ao quadril sustém um suspiro de contrariedade [quando é que vou ser dona de mim], erguendo-se então à vertical para num salto mergulhar nas páginas brancas de um caderno muito usado.

sábado, 20 de fevereiro de 2016

Prazer[eres] (sem explicação)


 
Ali, exactamente ali, podía desenhar a giz o sitio. Fazer um risco a todo o contorno, levantar-se e era como se ele lá estivesse. Ali. Deitado no quente, de lado, a cabeça sobre o cotovelo esquerdo, a perna do mesmo lado esticada e o pé morto ao abandono, a outra dobrada com o joelho a roçar o quente do soalho batido pelo sol sem se importar com as calças do fato que tanto trabalho tinham dado a vincar.
Ali exactamente onde passava a claridade do dia e enchía o quarto de luz, ficava tudo morno e ele descia ao chão e deitava-se como um bicho sem dizer nada a observar o vazio.
Um gosto que não tinha explicação e quando lhe perguntava porque fazia tal coisa sem se importar com a roupa, os modos, a idade, dizia hum, esfregava ao de leve o joelho dobrado na madeira quente do soalho e voltava a olhar o vazio, um ar de satisfeito, muito satisfeito.
Podía fazer-lhe o desenho do corpo a ocupar-lhe o lugar que lhe dava tanto prazer, mas um dia experimentei para saber o que sentía e não sei explicar. Talvez o morno, o quente, ou o cotovelo a amparar o rosto ou então o toque do joelho na madeira tão macio, não sei, talvez o sol no cabelo ou tudo. Ou apenas lembrar-me de coisas que nunca mais tinha lembrado, coisas sem importância sem me importar com nada, mas mesmo nada, mesmo estando vestida com roupa de fora. 

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Campo de Palavras (27)




Sem pretensões de obra feita como herança a semeadura das letras acontece bravia. Não há preparo especial ou dia exclusivo a ela dedicado, pelo contrário a todos eles entregue como retiro da alma acharia salvação na paz que a turbulência das palavras de tantos e tantas vezes em conflito para quem chega primeiro a terreno, cansada, deixaria levar-me mesmo mostrando contrariedade, mesmo confessando satisfação.
Planto o que sei.
Que será o que aprendo escrevendo, que será pouco, que será o que me sai sentindo o que acho e o que observo e o que sou não sendo sendo outros.
Provavelmente, à vista de outrem, não um campo mas um matagal do qual se deverão manter longe, intrincado como um labirinto, perigoso como um monte de silvas e volúvel como um pântano.
Certamente, tudo atracções  para o meu verbo.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

[O tempo] não importa

 
 
Quantos anos?
Às vezes tinha que contar pelos dedos, à socapa e dentro dos bolsos, de cabeça não conseguia, a cabeça só se prendía às imagens que resvalavam a uma velocidade estonteante que mal conseguia apurar o sabor de as reviver, quando tinha sido e onde estava, se lhe perguntassem quantos anos sorriria com ar conformado para evitar a matemática e de seguida a maldição, tantos quantos a dor ainda lhe doía e apertava os dedos, achava que era mentira, impossível.
A cabeça pregava-lhe partidas e punha-a a acordar de braço esticado à procura de um lugar vazio ou a telefonar para um número desactivado ou até mesmo a sobrar no talher para além do seu. E lá voltava aos dedos contados, aos anos perdidos numa soma repetida que não achava inicio nem fim até desistir e esquecer das mãos escondidas para então viver lenta e de olhos abertos imagens do que não houvera tido tempo.
Quantos anos, e pousava as mãos no regaço à espera que ele as tomasse nas suas, sorria, o tempo não importa é uma brincadeira de crianças que se conta pelos dedos, anda dá-me as tuas mãos.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

O verbo curto



 
Deixei de me incomodar com perguntas que parecem não ter vontade de serem respondidas, evitam-nas chamando a minha atenção para outro pormenor achando que esqueço ou então oferecem  longas e rebuscadas dissertações na esperança de me encherem de verberança bastante que me confunda como suficiente para uma explicação dada.
O erro está na memória.
É que nem me esqueço do que pergunto e também sei o que quero.
E se dantes o sossego não vinha enquanto não recebesse uma resposta clara mesmo que a exaustão me perseguisse e eu obcecada prensava quem ma poderia dar, agora não quero saber e nem ao esforço da repetição dou a vez.
É que há palavras que não se merecem na boca de certa gente e insistir nelas para receber patacoadas é encurtar verbos. Querem responder, pois que o façam de forma limpa, simples e objectiva. Não querendo, que se escusem a adornos de fala ou rodeios de sonoridades baratas que para palavras prefiro sempre as de um livro e de ruídos estou eu farta.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Chove tanto




O que eu queria mesmo era que alguém chegasse perto e me contasse uma história. Um relato fantástico que me prendesse a atenção de tal modo que levasse todo o meu olhar a desviar-se daquele horizonte riscado de viés e que de dia para dia me parece mais próximo, tão mais perto que com uma mão o consigo alcançar ou até fechar no punho e esborrachar para se desaparecer de vez, escorrendo pelas pregas do pouco volume da chave a minha obsessão de encurtar o caminho entre mim e o lá.
Gostava que alguém viesse e aos poucos desenrolasse, encostado ao muro de cimento deste terraço onde não há gaivotas hoje nem pessoas sem juízo, uma história com segredos, aventuras, contratempos e bravuras, algum humor para o riso e uma dor para os silêncios até ao fim se imaginar como nuvens a destapar um céu melhor do que agora.
Pelo chão beatas mortas, molhadas do choro da chuva, nem gaivotas, nem história, nem lados de lá, fico-me a fazer de conta que são lágrimas minhas.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Travessias do Rio - 6



 
Já anoiteceu, como me enfada este tempo de espera em que o Rio se atravessa no reflexo dos rostos espalmados no vidro a separarem-se na segurança do apito de abre-portas até se despencarem correria abaixo até ao cacilheiro. Fazem de conta que não vêem a água, miram-se bonitos aproveitando a luz das lâmpadas fluorescentes a comporem cabelos ou a dar puxões a bandas de casaco que escondem as bebedeiras do dia às costas, como me aborrece este cais de espera em que o Tejo nos vê melhor que ninguém, despidos, rindo da nossa condição mortal de estômago faminto e ansioso do pé molhado, que se escape este, ainda assim a barca nos há-de levar ajeitados até ao pedaço de terra que se chama a minha terra, aquela que me há-de comer. O Rio do lado de lá do vidro às escuras. Acham.

in Travessias do Rio, Dezembro 2015

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Como é que se diz [ou escreve]




Quando abro os olhos já a dor da luz me levou há muito, dos restos espapaçados é verdade que o morno pode até enganar por uma espécie de vida aparente, invólucros de carne que se arrepiam ao esticar um braço para ajeitar a mecha de cabelo incómoda ou mãos que tacteiam na procura da vista independente e já a pé, restos preguiçosos e serôdios à realidade da clareza dos ângulos iluminados.
Tanta coisa que não se sabe dizer, um gotejar de verbo na intraduzível expressão da caneta a meio caminho pela palavra boa e eficaz, restos espapaçados entre morno e a ansiedade da busca levantando panos-páginas na tentativa de uma dobra os desencantar do seu esconderijo, que falta de vista! Dói-me o verbo ou o sentir ou tanta luz que acaba a cegar pela lucidez da minha carne que me levo aos restos de um gesto de tapar o rosto.

sábado, 13 de fevereiro de 2016

Instantâneo - Episódio catorze



Acaricio o branco das páginas, a alegoria da lâmpada de Aladino talvez me traga o verbo, talvez o instantâneo seja Arábica fresca de moer, nem os gatos se avistam, enroscados na preferência das pregas de cama quente ao pasmo frio do corpo que nem a manta pelos joelhos consegue ser chamariz bastante para um consolo de alma quando tudo se apresenta parado. Queres café, diria eu ao Gaspar e ele responderia tu és louca mas o Alberto mal começado nestas lides ignora aflições de escrevinhação e as perguntas que lhe possa fazer apenas lhe abrem os olhos amendoados para logo os voltar a fechar sem outra solução senão a companhia, pequenos ruídos de bocejo aborrecido pela inactividade do tempo a passar. Um golo, a desolação da realidade do café tão de fingir quanto as linhas imaginadas para corrigir escritas em sobe-e-desce, não-sobe, não-aparece, não me aquecem as letras no pêlo dos gatos ou a conversa tão intensa quanto uma estória de deitar [nem o melhor polimento conseguirá fazer o Aladino saír] com um cão de olhos de amêndoa. Bebo, bebo tudo até nada ficar e o círculo branco ensanguentado do fundo da caneca ecoa a tempestade que faz lá fora. Tu és louca ouço, e reconheço no tom grave e saudoso o afago da tinta ao papel.
 
 

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Pela paz e pelo amor


 
Um coração deste lado e uma flor deste e desenhava nas maçãs do rosto a lápis de olhos que depois havia de colorir a batom vermelho. Eu deixava. Eu quería. Pela paz e pelo amor dizia a Mãe. E por isso, por ela, por mim e pelo Carnaval eu vinha para a rua de cara pintada, gravata do Pai atada na testa, muitos colares ao peito e nos pulsos, o coração aos pinotes pela bailação da tarde, o corso a desfilar, as bisnagas de que fugia não fossem borrar a minha paz, todo o meu amor.
 
O mau tempo obrigou ao cancelamento de todos os festejos carnavalescos e a Protecção Civil ficou em alerta. Sei que é Mardi Gras por ser feriado, do resto desconheço que músicas soam e se há bailes de assalto como se faziam ou até mesmo se os homens se mascaram de dominó negro, ou ainda existem os típicos matrafões de colher de pau e bisnaga na outra mão.
 
Mas pela paz e pelo amor desenhei um coração na maçã do rosto.
Veio o cão e lambeu.



segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Guardada



Parece tão fácil comer as palavras já feitas, passeio-me pela Árvore e tento apanhar o jeito de outrora que aparentemente natural, não costumava pedir amparo de cenários ou cuidados a encosto de folhagem para vir dizer, hoje procuro o conforto do tronco à procura de mim, terei ficado por cá distraída e encasulada, eu, os outros mandei-os a terra sua, as feridas do verbo presente têm relação com a busca do que fui e não sou, do que digo e do que guardo, do ainda e sempre difícil escolher entre contar simples ou simplesmente contar.
Afinal esta Árvore não são só amontoados de anos em palavras, uma coleção de textos que se progridem ou amarfanham na qualidade, há tanto mais de uma vida, vidas que relato no meu crescer, na minha dor e alegria, na funcionalidade das horas em que a tinta parecia não chegar para traduzir os sentires.
Fácil como as palavras já escritas parecem nada ter demorado a passar, seiva invisível que me guarda dos malefícios do tempo.

domingo, 7 de fevereiro de 2016

Alberto

 

 



O Alberto foi resgatado de uma vida de abandono. Andava pelos caixotes de lixo e deve ter sido atropelado pois tinha marcas de abrasão além de uma ferida aberta na pata direita dianteira. 
É extremamente meigo e até a adaptação com os gatos Bóris e Pipoca foi pacifica. Menos na parte da comida, que defende com unhas e dentes e só a a mim permite a aproximação e o toque.
Como todos os cães que foram desprezados, sofre da síndrome do abandono e seja por 5m ou por 4h, entrega-se à destruição que no caso Alberto, são os tecidos. Há uma apetência por qualquer pano que lhe é irresistível e o seu tamanho médio engana a tremenda força que possui, pois consegue arrastar um colchão de 2mts e desfazer a roupa de cama em tiras.
Quando repreendido é notório os maus tratos a que terá sido sujeito, já que um tom de voz ríspido e o dedo esticado fazem-no amedrontar até tremer.
Tem apenas um ano de idade e nenhum ser merece já ter passado por tanto.
A estranha mistura dos genes de pitbull e jack russell conferem-lhe um carácter que tenho vindo a descobrir como um fantástico cão de guarda e um inesgotável enérgico companheiro de brincadeiras, que quando finalmente aterra, procura com o focinho rosado o contacto da minha mão.
 
 

sábado, 6 de fevereiro de 2016

Incapaz



Suspendo-me em dormires intensos, curtos, abanões que me trazem a confinados ora diminutos ora largos mas que desconheço no sempre visto de todos os dias. O quarto deixou de o ser, nem mesmo a câmara de sonhos lentos ou pesadelos lambidos a repetições me acham na perdição de saber onde estou ou regressar a porto seguro, nem eu nem os outros que destes o silêncio encaixotou-os e só quando reconheço os estalidos dos móveis a chorarem o inchaço da respiração ou a míngua pelo frio da noite, lhes ouço o pedido de socorro por mim.
Então acho-me e eles calam-se.
E a consciência desses instantes de realidade a morderem-me no pescoço a lembrar a nitidez de estar desperta encharcam-me de palavras velozes que nunca serei capaz de escrever.
Adormeço profundamente como uma morte e começa tudo de novo.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Das portas & janelas - Vol.2 - Esboço nº3



Quanto mais vociferava e assomava com baldes de água ameaçadora ou de cabo de vassoura empunhado mais havia vontade de lhe ganhar o terreno, fazer barulho, esconder-lhe o tapete ou simplesmente bater com os nós dos dedos na madeira da porta e fugir a sete pés que já sabíamos, vinha lá o diabo.
Rogava pragas, queixava-se da pouca educação e do muito ruído da bola a estourar-lhe na portada e nós sem responsabilidade na infância troçávamos do canto em que morava, apetecível a partidas e jogos de escondedura aos primeiros beijos quando a noite de Verão nos despertava para as borbulhas anos depois, nem sempre visíveis no nariz metediço nas blusas leves das garotas conquistadas. Ou o resguardo de emergência na ombreira da porta robusta da chuva desprevenida ou de algum malandro a que se procurasse escapadela súbita, que com o diabo ninguém queria nada mas nós éramos de casa ou quase.
O destino de quem lá morava ninguém lembra, o tempo sopra os factos e as réstias do que fica compõem as histórias que se contam, mas dei comigo a admoestar uns garotos que se entretinham a fazer da porta a sua baliza e mesmo ninguém tendo aparecido do lado de dentro para pôr ordem no sitio, fiz-me de diabo e guardei a honra de anos felizes.


 
(in Das portas & janelas-Vol.2, Maio-2015)

Todas as fotografias da Colecção Das portas & janelas-Vol.2 são da autoria de Eduardo Jorge Silva

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Duas



Afasto-me.
Deixo o corpo sentado ou a desempenhar o que esperam de mim, até os olhos ficam por lá na reminiscência do que sempre conheceram, tiveram o alcance das delimitações a terra proibida com o aviso de não entrar a estranhos, qualquer um que pretenda entender do que sou.
Afasto-me. Vejo este todo de mim sem nada fazer tão mais exausto que o que ficou entregue a tarefas pesadas de conduzir uma vida vestida, justamente abotoada para que nada sobeje de outra suspeitamente à parte em que as palavras se emudecem como granito, pedra a pedra transportadas por mãos que as esboroam e me dão à boca, de novo palavras.
E esta distância entre o que está para os outros e o que fica de lado é a segurança das duas.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

O dedo


 
 
Agarrava-se compulsivamente e babando-se deleitado não largava, mesmo que pela mão o puxassem, o tentassem distraír com a roca, a guloseima, nada lhe tirava o prazer de sofregamente chuchar o indicador, já mirrado, encolhido e deformado pelo esconderijo quente e molhado do orifício bocal.

De quando em vez, uma palmada, não se aponta que é feio, mas olha lá, lá as nuvens, lá os bichos, lá os papões que esperam o tombar da noite para se deitarem comigo, por baixo da cama à espera que saias para me deitarem as mãos, ali mesmo ao alto perto do arco-íris, o que é o arco-íris, e nada lhe tirava a teima do indicador espetado sempre pronto a furar com perguntas.

Foi na ponta do dedo que descobriu a pele, rugosa nalguns sítios, cheia de histórias e de temperaturas e de reacções e desde então nunca mais perdeu o hábito de tocar fascinado o mapa que as linhas muito juntas da derme lhe contavam e lhe pedíam. Apaixonou-se.

O dedo calejado dedilhava de olhos fechados as cordas do seu temperamento, chorava o violino sobre pautas invencíveis em tempo e compassos de cabeça levemente caída amparando as emoções nos dígitos arqueados.

Torto e enfermo ganhou um pequeno monte de carne empurrada pelo vício da caneta aprumada ao papel aberto a lembranças de quando era menino, chuchava muito recorda-se e ainda se lembra do sabor do dedo na boca tão igual ao prazer da tinta azul-china a manchar-lhe o indicador.

Fecharam-lhe os olhos, não sabe quem, mas viu distintamente um dedo na sua direcção, apontando-o como lhe havíam proibido.
 


Escrito e publicado originalmente no extinto Blog Uma casa na árvore, 01.02.2009
 

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Ohh



 
 
 
É tremendo quando não há bonecos e tão somente letras a entrarem no cérebro a fazer o pino

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Uma borracha no coração pf

 
 
O que me dói tão fantasticamente é a ausência da presença que se mantém gloriosa a meu lado.
Ou a presença contínua do vazio.
Olhar é ver o nada no espaço ocupado pelos olhos da lembrança. Dos cheiros. Dos sons. Dos risos em gargalhadas. E fecho os olhos para ocupar o branco desocupado das partidas do agora está, agora já não está mais.
 
Há vezes em que me apanham nesta teia, caída para dentro de mim, perguntam o que se passa comigo.
Falo-lhes que o Gaspar morreu.
Encarquilham a testa.
Ninguém quer saber da morte de um cão, da tristeza que se sente quando um amigo único como ele parte, da minha dor que não consigo explicar, que não quero tentar sequer expor.
Falam de coisas, outras coisas que dificilmente percebo porque não é a minha língua.
 
O que me dói é este branco tão violento e tão nítido que não consigo explicar.