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quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Degelo



Final de dia, despir a tarde, arrancar baton, riscos e sorrisos e saltos altos e alturas compradas, descompôr cabelos e pernas afastadas, não responder e responder e murmurar e soltar quês e hãs, cantarolar, tamborilar, espreguiçar e fazer marrecas e pôr a mão na anca, falar depressa, falar calão, abraçar, abraçar, abraçar, meter o dedo na boca, chamar o cão, chamar o gato e chamar o gato, deitar no chão, dar beijos à vez, reclamar de lambidelas, reclamar de arranhadelas e puxões de cabelos, andar de quatro, observar, ficar quieta, ficar muito quieta, deitar de lado, pensar amar, abraçar, abraçar, abraçar.




quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Alucinações de uma vida paralela (7)



Não me calço, não me escutam, não me sigam, para onde vá vêm os passos atrás, não são só meus, uma porção deles que se esconde e vai à medida do caminho apagando vestigios das pegadas, ora calcando nas minhas ora voando ao redor, dizem invenção, mais uma das minhas, todas minhas, um mundo à parte.
Erro maior, que mundos tenho eu, não apenas mais outro.
Sempre falei deles, riam-se, eu a contar, pedíam-me que dançasse, eu a dizer, shhhhhh, eu a insistir, nem mais uma palavra, nem mais um passo.

terça-feira, 7 de agosto de 2012



Até ao céu dois elevadores, em caso de perigo usar as escadas de serviço, se tem boas pernas subir os degraus, em qualquer caso é sempre para cima, não há que enganar.
Vai mais além, não dá para acreditar que o cimento se estanque aos pés, ainda noutro dia perseguiu à vista uma ave - ía jurar que era um flamingo rosa - e quase o alcançou, o diacho do bicho tinha muito treino e só por isso não se pôs a seu lado, mas por muito tempo manteve-se na sua cauda até o perder na massa fofa de nuvens brancas que se aglomeraram e lhe toldaram a vista, quase-quase-quase, no instante em que lhe ganhava... Regressou ao terraço, um pouco contrariado, um pouco derrotado, bastante cansado ao evitar estatelar-se ao fundo de tantos andares.
É dificil por vezes evadir corpo e alma, quando os dois não se acompanham, quando os olhos olham uma natureza bela e o corpo quer saltar para fazer parte, sentir na carne esse gozo... e duvidar que a alma venha a sentir se o corpo não aguentar.
Será, disse sonoramente a si.
Acabou de fumar o cigarro e lançou a beata entre dedos como um projectil, seguiu-lhe a trajectória, imaginou-a como uma ave a libertar-se.
Mais alto e mais ao longe, um risco no céu sublinhava a chegada de um avião ao aeroporto da cidade.
Fechou os olhos e por segundos tudo desapareceu.


Fotografia oferecida por Eduardo J.Silva

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

O bater do coração (quinze)



Talvez me escreva uma carta.
Ao alto não ponho data, assim estará pronta para ser lida em dia qualquer que precise de ouvir coisas bonitas, nada de serviço, tudo muito trivial, banal, a começar pelas perguntas do costume como vou eu, a familia, o cão e os gatos, os cozinhados, a escrita, a dança, essas coisas que ao ler-me hei-de fazer torcidelas com os beiços e risinhos parvos mas cá por dentro gosto e a saudade de algumas delas dá-me apertos e baques, acelera-me o sangue nas veias, aflige-me às mãos uma tremura leve de tanto apertar com ternura o papel de carta.
Devo escrever-me uma carta.
Ando farta de tanto profissionalismo. De tanta hora marcada. De tanto rigor. De tão certinha ando em cima do risco que até de olhos fechados o sei correr sem risco nenhum. De tão cansada de estar cansada que já não me canso.
Devo escrever-me e responder-me com tantas parvoeiras como tantas deverei receber.
E devo remetê-la em correio azul pois urge que volte a sentir, metade de mim está dormente e não responde quando chamo.

domingo, 5 de agosto de 2012

O debate



Podía dizer que aqueles eram eles e mais nenhuns outros e acreditassem se quisessem, bastava ele saber, a verdade é sempre bastante para quem a sabe embora quem a duvide ache que a proclamação seja necessária e vá de gritá-la e ecoá-la e puxar a manga e perguntar repetidamente se ouviu bem.
Iniciaría desta forma o debate.
Para quem desatento, tivesse ensejo de se manifestar preocupado com algo alheio, usaría a insistência: Quem são aqueles? Somos nós? Mesmo? Tem a certeza? Olhou bem? Não tem dúvidas? (Mas que chato... quem é este gajo? Só me faltava esta... vem uma pessoa espairecer e leva com cada um... é que não desiste! E se eu fizesse de surdo-mudo?)
Perante a gaguez inicial da surpresa seguida da mutez já reflectida, passaría ao plano B: A linguagem gestual.
A universalidade inteligível sem parâmetros de faixa etária a comprometerem a mensagem, sem barreiras sociais, sem o cognitivo da questão a ser vedado pela construção académica.
Prendeu-a nos braços, descaiu a mão direita sobre a anca saída e sentiu o quente dos seus lábios presos, sentaram-se, o rosto dela apoiado sobre o redondo do ombro, fiquemos assim, deixa-os, esquece-te deles... não nos conhecem, não nos podem ver, sossega, o meu beijo...



(in Telas, Set.2011)

sábado, 4 de agosto de 2012

Olhar com vista sobre o Rio (1)




Ri-te, podes fazê-lo de boca cheia, propriedade não te falta e eu mereço mas também já perdi a vergonha, aponto-te esta, toma lá, como razão maior para me deitar contigo depois de ter jurado não te voltar a falar, prometido a mim mesma que sobre ti não gastaría um pingo de tinta que me caísse distraída enquanto pensasse sobre outras palavras e ainda sobre outros rios.
Que tu sabes que houve outros, sabes sim, mas a tua cor anda por dentro e por fora de mim há demasiados anos, alterou-me o olhar, a cidade, a forma como piso o chão e desembarco estremunhada na realidade, por isso desavergonhadamente e de mãos escondidas retorno à tua cama, aos teus braços, deixo que me faças o que queres fazer, faz que eu não gosto mas preciso, que raiva este querer de amor, vá lá eu entender-me que nunca subjuguei vontades a homens e alongo pernas a letras só para ficar mais bonito escrever-te.
Ri-te que eu choro mas só por dentro, esse gosto não te dou, querías tu que tu aumentasse a galhardia?! Levas-me toda por agora o mais logo se verá.



(in Olhar com vista sobre o Rio, 2011)

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Caixa de sapatos



 Ao levantar a tampa o que salta à vista são as cores, os lilazes a sorrirem entre os pálidos envergonhados do açúcar amarelecido dos recadinhos dos pedaços de papel rasgado à sorte para deixar memória do não te esqueças de mim, lembra-te, eu também, para sempre, para sempre numa caixa de sapatos entre botões caídos nos abraços da despedida e o perfume do lenço molhado que secou no agitar de tanto se dizer ao horizonte adeus, que não te vejo mais, onde estás que te quero e não consigo recordar, ainda agora nos meus braços sentía calor e depois vazio, frio, peso de malas que se arrastam em mudanças de vida mas a caixa de sapatos essa vai comigo para todo o lado, carrego-a como a minha vida, tem mechas de cabelo minha e da minha mãe e até da minha avó e dos meus filhos, tanta gente que aqui cabe entre flores que secaram e se desmancham e nem deste modo lhes perdemos o destino de apontarmos e contar que nesse dia foi oferecida para pôr na lapela, tal como vai na fotografia, esta, e mais esta, todas as que aqui estão a preto e branco de cantos retorcidos de tanto passarem entre dedos e bocas de beijos e esta medalhinha, quase esquecida! E um brinco, o outro perdido, sabe-se lá por onde, oferecidos por um namorado muito querido, segredos, quantos, tantos, ah se esta caixa falasse...
- A caixa é para levar?
- É sim.
Leva a caixa dos sapatos novos que comprou.
Um dia há-de ter cores bastantes na sua vida que os sapatos não lhe farão falta alguma.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

O livro negro dos homens (um)



A impressionante capacidade dos homens para contarem histórias começa na sua engenhosa capacidade de mentir, esconder, adulterar, alindar o que lhe é desfavorável, nocivo, corrosivo, temível, um armário gigante onde encafuam esqueletos e vão amontoando ao longo da vida desde a mais tenra idade, toda a espécie de desculpas que rapidamente se transformam em argumentos de peso e depois em justificações até ao culminar do perdão pela morte do seu semelhante.
Contar um facto, reproduzir um acontecimento nunca é exactamente clonar o sucedido, é acrescentar-lhe de si uma arte do seu carácter, uma marca (que parece) insignificante que faz toda a diferença.
Eu faço parte desse mundo. Horrível. Tornar belo o que vi feio, transformar divertido em palavras o que escutei tristemente estúpido a tombar da boca alheia, a justificar a minha morte porque não aguentei a vida parda de outros.


(lx. 18-01-2010)

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Campo de palavras (8)




Feitas as contas disseram-me que o estrago não é grave, que é como quem diz, o que fiz tem reparo, que é como quem diz, vou pagar as favas, ou adaptando a coisa aqui, vou suar as estopinhas e preparar o campo para palavras novas (não o fiz sempre?!), pois tenho bom lombo e o terreno ficou com muita pedra e erva daninha e há que o pôr arável.
Nem vale a pena retorquir, dizer que nem acho que tenha sido tão mau assim (por acaso até acho, aliás até pior!) e sementes nunca faltaram, tomara que brotem, cresçam e floresçam, despontem bons frutos, sombras gradas e grossos troncos.
Conversa. De palha. O que se quer mesmo é verbo.